Continuo aqui a série de posts analisando o sexteto Noite Transfigurada de Arnold Schoenberg, que segue frase a frase um poema de mesmo nome de Richard Dehmel. No primeiro post fomos apresentados a um casal que passeava por um bosque à noite, e no post seguinte, a mulher confessou ao homem que está grávida de outro, pois viu na maternidade uma solução para a infelicidade em que ela vivia.
A segunda metade da segunda estrofe do poema descreve “como” ela fez para engravidar.
[…]; da hab ich mich erfrecht,
[…]; assim eu cometi um ato despudorado,
da liess ich schaudernd mein Geschlecht
assim, estremecendo, deixei meu sexo
von einem fremden Mann umfangen,
ser tomado por um homem desconhecido,
Ouvimos a mulher “estremecendo”, e isto será praticamente uma constante em toda esta parte. No final do trecho ouvimos o motivo masculino no violoncelo: é um dos homens que ela encontra na rua (já já eu explico melhor!).
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN138.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 138 a 140 (Juilliard-Trampler-Ma)]E aqui, uma versão selvagem, quase irreconhecível, do motivo da maternidade. Como o exemplo ao lado mostra, este motivo é a idéia da maternidade modelada para encaixar como sentido para a vida (ou vice-versa).
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN141.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 141 a 143 (Juilliard-Trampler-Ma)]O motivo da infelicidade reaparece aqui para assombrá-la e afastar qualquer possibilidade de desistência da parte dela.
Em outras palavras, o que estes três trechos querem dizer é: a mulher está tão transtornada pela infelicidade, e tão decidida a se tornar mãe, que agora ela se sente capaz de qualquer imoralidade para realizar seu sonho. Por isso ela saiu às ruas (assim imagino eu) para selecionar um homem desconhecido, alguém que possa ser o pai biológico de seu filho.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN144.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 144 a 152 (Juilliard-Trampler-Ma)]A sequência anterior é repetida um pouco mais aguda: a mulher estremecendo, avaliando mais um homem na rua, sendo impelida pelo desejo de ser mãe e por sua infelicidade.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN153.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 153 a 160 (Juilliard-Trampler-Ma)]Por mais duas vezes ouvimos a sequência anterior, porém numa versão mais resumida. O motivo da infelicidade não aparece aqui, um sinal de que a mulher está bem mais decidida. Vemos ela avaliando mais dois homens lá no 2º violoncelo, e ela enfim decide escolher o último.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN161.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 161 a 168 (Juilliard-Trampler-Ma)]Arrumando toda a coragem possível no mundo, a mulher seduz o escolhido e o leva (ou se deixa levar) até um local propício. Ela está tão fora de si que ouvimos não só a versão da maternidade como sentido da vida, como também seu inverso, isto é, o motivo de cabeça para baixo. As figuras rítmicas nos violoncelos causam um grande conflito rítmico, denunciando a enorme confusão que se passa no íntimo da mulher. E enfim:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN169.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 169 a 172 (Juilliard-Trampler-Ma)]Ela se entrega ao homem desconhecido. É fácil de ouvir a respiração ofegante dos dois, ela no violino e ele no violoncelo, servindo de acompanhamento aos motivos da maternidade e da criança. Ao fim do ato sexual, ela relata:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN173.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 173 a 174 (Juilliard-Trampler-Ma)]und hab mich noch dafür gesegnet.
e eu ainda me senti abençoada por isso.
A criança foi concebida, e por isso agora ouvimos o motivo da criança. O que era para ser uma benção, revela-se um grande pesadelo:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN175.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 175 a 180 (Juilliard-Trampler-Ma)]Nun hat das Leben sich gerächt:
Agora a vida tem se vingado:
Terminado o relato de seu passado, voltamos ao presente e reecontramos a mulher (olha lá o motivo dela) aos prantos, em estado de grande agitação nervosa. Ela conclui:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN181.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 181 a 187 (Juilliard-Trampler-Ma)]nun bin ich Dir, o Dir begegnet.
agora eu conheci você, oh, você.
Sim: esta sequência de acordes é aquela mesma do post anterior (comp. 41 a 46), a que contém o polêmico acorde de nona invertido. Porém desta vez a tragédia é explicada pelo violoncelo, que martela repetidamente o motivo masculino: é ela dizendo “agora eu conheci você, oh você, oh você“…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN188.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 188 a 200 (Juilliard-Trampler-Ma)]Então a mulher se cala e ouvimos apenas seus soluços em meio a prantos.
Terceira estrofe
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN201.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 201 a 211 (Juilliard-Trampler-Ma)]Sie geht mit ungelenkem Schritt.
Ela caminha com passos desajeitados.
A terceira estrofe é descritiva assim como a primeira, e ambas começam descrevendo passos com o motivo da noite. Porém, aqui os passos são pesados, “desajeitados”; a mulher sente-se culpada e envergonhada, e tem absoluta certeza de que seu relacionamento irá acabar.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN212.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 212 a 215 (Juilliard-Trampler-Ma)]Sie schaut empor; der Mond läuft mit.
Ela olha para cima; a lua a acompanha.
Lembram do motivo da lua, lá do primeiro post? A lua acompanha a mulher, que caminha com passos desajeitados.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN216.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 216 a 218 (Juilliard-Trampler-Ma)]Ela olha para cima, o violino dirigindo-se para os agudos.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVN219.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 219 a 228 (Juilliard-Trampler-Ma)]Ihr dunkler Blick ertrinkt in Licht.
Seu olhar triste banhado em luz.
E aqui, o violino triste representando o olhar da mulher. As cordas agudas no registro agudo, não poderia haver melhor descrição para a luz da lua. A seção se encerra com um sombrio Mi bemol menor, e o violoncelo a anunciar que o homem irá falar daqui por diante. Mas este é um assunto para o nosso próximo e emocionante post, aguardem!
Ouçam agora todo o trecho, que compreende a segunda metade da segunda estrofe, mais a terceira estrofe.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/07/SVNe3.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – compassos 135 a 228 (Quarteto Juilliard com Walter Trampler e Yo-Yo Ma)]
Um jeito bem eficiente de ir acompanhando essa análise é ter o primeiro post aberto em uma janela, naquela parte com o sumário de motivos (da mulher, do homem, da maternidade, etc.), e ir consultando sempre que eles fugirem do ouvido. (Y)
O primeiro momento de existência da obra musical consiste num ato de criação, de construção da obra — numa poiésis inicial, referindo a terminologia adoptada por Molino/Nattiez. E neste ato de criação, qualquer obra musical, pela sua natureza intencional, vai invocando a existência de objetos musicais — sons, construções sonoras — com uma determinada importância na construção musical. Estes objetos musicais existem e como tal são considerados devido somente à sua importância em relação a outros, mais ou menos semelhantes: remetendo para outros objetos musicais dentro da mesma obra, funcionam como símbolos, são verdadeiros símbolos musicais. Estes símbolos existem, assim, não especialmente em relação a conceitos, a coisas, mas em relação a outros símbolos semelhantes, com uma determinada importância na estrutura da obra em que se enquadram. A tradição de análise de Riemann, Schenker e toda uma linha de análise musical de índole estrutural, remetem para o estudo deste tipo de símbolos, da sua sintaxe, enfim das relações (tonais, harmônicas, formais) dentro de uma organização exclusivamente musical, quer seja uma só obra, ou mesmo um conjunto de obras (um estilo, uma época, uma técnica, etc.).
Mas considerando as evidências, observações, experiências e as considerações de muitos musicólogos, psicólogos e outros teóricos da música — S. Langer, L. B. Meyer, Sloboda, Clynes, Hanslick até um certo ponto — são possíveis de encontrar elementos musicais — símbolos musicais — que remetem para ações, para coisas, para movimentos, para ambientes: estão em substituição de outros que não são em si objetos musicais. É o caso, por exemplo, dos toques militares, dos sons onomatopaicos, das figuras de retórica musical (“Affectenlehre” em música barroca), das sonoridades padronizadas passíveis de serem encontradas em instrumentos eletrônicos. É, por outro lado, o caso de uma possível relação intrínseca (psicológica e mesmo fisiológica), não intencional ou premeditada, entre os seres vivos enquanto organismos sensíveis (emocionais) e uma sucessão de sons, entre o ouvinte e a (uma) música; uma relação psicomotora entre o indivíduo e uma possível simbolização de um contínuo emotivo reconhecível através do “movimento” da música — o seu ritmo, o tempo, etc. Tudo isso foi muito bem evidenciado até agora na presente análise. Meus efusivos parabéns. Congratulações.
Excepcional a análise!! É incrível como a música é realmente capaz de expressar os sentimentos!!
Muito bom o trabalho de vocês!!! Deus os abençoe!