19abr 2017
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Entrevista para a Folha Sinfônica: a etiqueta do concerto padrão

Capa da Revista Folha Sinfônica: Ano XI - No. 62
Capa da Revista Folha Sinfônica: Ano XI – No. 62

A velha questão de como se comportar em salas de concertos e o que isso pode ter de razoável, ranzinza, ultrapassado e/ou expiatório já ganhou boas abordagens aqui no blog, e há alguns meses tivemos a honra de ser abordados pela Folha Sinfônica em uma entrevista comigo sobre o assunto e sobre o post “A desumana exigência de civilidade nos concertos – Soluções?”.

Na entrevista, a jornalista Deise Voigt conversou comigo sobre até que ponto a etiqueta do concerto padrão pode ser responsabilizada pela recepção do público atual da música clássica, e ainda pudemos falar um pouco sobre como eu me aproximei da música clássica e sobre o nosso trabalho aqui no blog.

A Folha Sinfônica é uma tradicional revista de música clássica com o essencial trabalho de unir o mercado brasileiro ligado a instrumentos musicais e a ensino de música, e em seus números bimestrais sempre traz entrevistas de interesse e esmero imperdíveis sobre o universo musical – nossa entrevista, reproduzida abaixo, está publicada no atual número 62 entre as páginas 40 e 41 em meio a outras matérias que vão de pesquisas sobre afinações a apresentações de instrumentos musicais. Recomendamos fortemente!

1. Qual sua formação acadêmica? Sabemos que é mestrando em Letras Clássicas pela USP, também graduou-se em Letras?

Graduei-me em Letras clássicas pela Universidade Federal do Paraná, mas nunca resisti em encontrar lugar para o amor pela música: estudando o grego clássico, tratei de me aproximar da teoria musical grega e de traduzir alguns tratados da Antiguidade.

2. Como iniciou seu contato com a música? Antes do piano, havia tentado algum outro instrumento?

Nos anos 90 algumas escolas brasileiras já começavam a se dar ao luxo de inserir informática na educação dos alunos, e com 12 anos eu fui encontrar o arquivo de um pequeno exemplo musical do primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven no sistema operacional de um dos computadores da época. Fiquei impressionado e passei a tatear caminhos para me aproximar daquele repertório. Fiz algumas aulas de teclado, até descobrir que não era preciso ter um piano em casa para estudar piano clássico, que foi o que fiz em seguida, passando a adolescência fazendo aulas e estudando no piano de uma academia de música próxima de casa.

3. Quando e como surgiu o Euterpe? Por que criar um blog voltado à música clássica?

Euterpe surgiu em 2010 com a ideia de ser um canal com recurso multimídia para falar de música clássica para os ouvintes. Apesar de soar simples, isso era algo que ainda não existia: enciclopédias de música são informativas, mas têm menos espaço para discussões e um pensamento crítico mais espontâneo; análises musicais acadêmicas são precisas tecnicamente, mas são voltadas apenas para músicos; e revistas de música são meios providenciais para a vida cultural do país, mas às vezes tratam mais do que cerca a música do que da música em si. A estrutura do blog nos pareceu conciliar uma abordagem comunicativa da música clássica com a criação de uma comunidade de leitores para o nosso tipo de conteúdo.

4. Quais as contribuições do blog para a área?

Uma das maiores contribuições do blog é o enriquecimento da fruição musical, ou seja, da percepção da beleza de certas obras, falando para o ouvinte comum. Isso é possível graças a uma linguagem comum, voltada para qualquer pessoa disposta a se apaixonar pela música, e pela possibilidade de ilustrar passagens musicais com pequenos reprodutores de áudio disponíveis na página, o que nos permite abordar mesmo aspectos mais técnicos da música de modo totalmente prático – isso já foi feito com obras como a Nona Sinfonia de Beethoven, alguns poemas sinfônicos de Dvořák, as Bachianas Brasileiras Nº5 de Villa-Lobos e até a Paixão segundo São Mateus de Bach. Mas além da apresentação ilustrada de obras musicais, também há reflexões sobre história, filosofia e pontes com outras artes que podem ampliar o modo de concebermos a música clássica.

5. Nos chamou a atenção o artigo sobre “exigências de civilidade nos concertos”. Quando decidiu escrever sobre o tema?

John Terauds é um crítico canadense que escreve para o site Musical Toronto, e um dia abordou um assunto muito comum também para nós brasileiros: os aplausos fora de hora e a etiqueta do concerto padrão, igual em qualquer parte do mundo. Ainda que a etiqueta do aplauso seja apenas parte de uma discussão sempre maior – sobre a relação da música clássica com a cultura geral e os meios que ela oferece para ser apreciada –, também se trata de um assunto polêmico em si, e me pareceu ilustrativo ser devidamente situado tendo-se em conta tanto o discurso dos que se manifestam de modo mais ferrenho como os que são mais liberais.

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6. A postura da plateia frente a concertos clássicos em ambientes fechados (ou seja, nos quais a civilidade é esperada) é apreendida no Brasil? De que forma?

Conheço melhor o público paulistano e curitibano, mas sei que isso varia muito: concertos que atraem um público mais habitual, como os tradicionais concertos da temporada de uma orquestra sinfônica, podem ter a sua etiqueta melhor assimilada pelos ouvintes. Já concertos excepcionais, que por algum motivo criam apelo a um público novo, podem ter alguns desentendimentos da plateia em relação aos momentos para falar, ficar de pé, tossir, aplaudir, etc., o que infelizmente tende a tornar o ambiente tenso.

7. Pessoalmente, o que pensa sobre essas etiquetas e rituais? Eles poderiam ter alguma relação com atrair ou afastar público?

Diferentemente do que poderíamos pensar a princípio, a etiqueta do atual concerto padrão não é antiga: ela é um produto do século XX – sabemos, por exemplo, que Mozart, no final do século XVIII, escreveu sua Sinfonia Nº31 com artifícios especialmente pensados para provocar os aplausos imediatos do público parisiense, para quem a obra foi apresentada pela primeira vez. Nesse sentido, repensar o formato do concerto padrão em nosso tempo não é nenhum atentado contra um bom senso inequívoco e atemporal, mas sim uma relação espontânea com a música clássica, tal como a relação de qualquer grande arte com a cultura geral, e boas ideias têm surgido como alternativas. Mas, ao mesmo tempo, a etiqueta do concerto padrão tem sido muitas vezes o bode expiatório de discursos radicais sobre a crise da música clássica que, na verdade, ignoram a verdadeira dimensão do problema que querem discutir: a etiqueta do concerto padrão não difere muito, por exemplo, da etiqueta defendida por cinéfilos mais exigentes em salas de cinema, e me parece que é antes o fato de alguns de nós tratarmos a música clássica de modo totalitário, com a pretensão de controlar o formato “oficial” da sua apreciação pelo mundo, o que pode torná-la menor do que ela realmente é. A apreciação da música clássica deveria estar presente de modo variado em nossa cultura, seja no formato do concerto padrão, seja em outros formatos, e apenas essa pluralidade (e mentes abertas a ela) faria jus à sua riqueza e seria compatível com um público maior.

8. Vários músicos, alguns publicamente, reclamam de comportamento inadequado da plateia. De que forma a falta de “etiqueta” compromete a performance artística?

A etiqueta atual dos concertos, mesmo não sendo atemporal, não prevê mais do que uma interação contida e controlada entre os músicos e o público. Por isso ter um público realmente interessado no que os músicos tocam é um problema alheio à etiqueta: envolve o papel que a música clássica consegue ter na vida das pessoas e envolve, acima de tudo, educação. Em especial no Brasil, tradições em qualquer campo não são muito valorizadas: o brasileiro ou não se interessa por sua própria história ou a acusa de hipocrisia, e não tem muitos meios de se ligar à importância de algo apenas pela sua tradição. O músico clássico precisa transmitir o valor do que toca em uma cultura que não reconhece de pronto o valor do seu repertório, e, como esse é um repertório que pode ser profundamente exigente e provocador com o ouvinte, é natural que algumas vezes isso seja difícil de ser mostrado apenas a partir do palco.

9. Como conciliar a euforia do público com a necessidade do músico?

Em geral, a necessidade do músico é recompensada pela euforia do público – a única coisa que pode corromper essa relação é uma euforia esnobe ou superficial com a expressão mais completa do músico, o que infelizmente é comum (por exemplo, aqueles que começam a aplaudir pouco antes da obra realmente acabar para mostrar que reconhecem o seu fim!). Há pessoas para quem uma interação mais livre e presente durante o espetáculo, como pedidos por temas para o músico improvisar, funciona melhor para catapultar o seu entusiasmo e isso pode perfeitamente ir de encontro à proposta de um músico clássico (vide a pianista venezuelana Gabriela Montero); enquanto há outras para quem as condições de uma audição mais embevecida, preservada por um concerto de formato tradicional, é que funcionam melhor. Com diferentes euforias do público e diferentes necessidades musicais, o ideal seria não ter que escolher, mas dispor de leituras da música clássica que caíssem por todo o espectro de perfis e de necessidades da cultura geral – um primeiro passo talvez seja ao menos abrir a mente para esse ideal, tanto por parte do público como de quem trabalha com música.

10. Em quais ambientes acredita que uma postura menos “sisuda” pudesse vir a ser aceitável?

Em qualquer ambiente é estranho que a música clássica seja tratada com sisudez: obras como a própria Quinta Sinfonia de Beethoven, que me encantou pela primeira vez na pré-adolescência, ilustram muito bem como a música clássica pode ser viva, inconformista e provocadora, o oposto de qualquer comodidade mortificante que se justifique como civilidade. Toda proposta de fruição musical clássica que se prove inteligente é capaz de gerar um ambiente tão surpreendente que seja capaz de tornar os ouvintes parte do que se expressa, o que tende a torná-los mais animados e felizes. Propostas de concertos de interesse nesse sentido têm sido cada vez mais discutidas publicamente (por Greg Sandow ou Bob Shingleton, por exemplo), o que tem muito a contribuir para o que se faz no Brasil.


Este post tem 12 comentários.

12 respostas para “Entrevista para a Folha Sinfônica: a etiqueta do concerto padrão”

  1. Ótima entrevista, principalmente sobre a falsa exclusividade da sisudez no ambiente clássico. Lembro que na saída de um cinema cult aqui de Recife, que aliás proíbe a entrada de qualquer alimento (terrível para quem só vê filmes comendo pipoca), um pequeno grupo de hipongas-socialistas-universitários-burgueses reclamava da qualidade sonora e o desconforto das cadeiras, que na minha avaliação estava razoável pelo preço que paguei. Infelizmente em alguns concertos populares ou de jazz noto também uma concentração excessiva e uma implicância com os detalhes. A cultura clássica parece influenciar a humanidade apenas nas formalidades.

  2. Heber e Bosco, obrigado pelos comentários!

    De fato, é a velha imagem da música clássica como gala-chique afrescalhado, preciosista e peça de museu. Séries como aquela da “Música clássica e porrada” [http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/musica-classica-e-porrada-parte-i], que fiquei de terminar até hoje, tentam flexibilizar um pouco isso, mas há mais a fazer. Estou animado com algumas mudanças que queremos fazer aqui no blog e ansioso pra escrever alguns posts retomando essas questões, tomara que a gente consiga se organizar bem por aqui.

  3. Quando à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, Benito Juarez promoveu ações muitas vezes de vanguarda. Realizou concertos ao ar livre, no Parque do Taquaral, incluia peças de MPB nos concertos e convidava o publico a ir assistir aos ensaios no teatro do Centro de Convivencia. Tais iniciativas aproximavam o publico da orquestra, que se tornou extremamente popular. Os músicos adoravam (sei disso, pois conheci vários).

  4. Leonardo,

    quero aproveitar o comentário do Bosco pra fugir um pouco da questão dos aplausos, pois como aluno iniciante na música clássica também tenho minhas dúvidas quanto ao momento certo de aplaudir. Acho que nesse ponto a distribuição do programa (que nem sempre acontece) ou uma rápida explanação do maestro sobre a peça que será executada (a exemplo do que faz o André Rieu antes de cada música tocada por sua orquestra) contribuiriam muito para a solução do problema. No último caso, também contribuiria com a educação musical.

    Mas no meu ponto de vista, o que mais incomoda é o barulho da plateia. Em algumas apresentações em que fui, seja para públicos maiores, como no Ginásio do Ibirapuera e no Centreventos de Joinville, seja para públicos menores, como no Teatro Guaíra de Curitiba, tive dificuldade de ouvir a peça executada ou detalhes dela (aquele floreio executado pelo violino, um xilofone ao fundo, detalhes que muitas vezes fazem toda a diferença) porque as pessoas ao meu redor estavam abrindo pacotes de salgadinho, conversando sobre a dança dos famosos, etc. Essa dificuldade é amplificada quando o local escolhido para a apresentação não é apropriado (nos ginásios, então, a acústica é terrível e som é extremamente baixo). Tentar pedir silêncio neste momento te faz receber um carimbo de arrogante, de sisudo, mal-humorado, entre tantos outros.

    No Brasil, acho que antes de discutirmos a etiqueta, deveríamos discutir a educação: tanto a básica, que diz que quando um fala, o outro baixa a orelha (o falante pode ser gente ou instrumento musical), quanto a educação musical que já não é ensinada nem em casa nem nas escolas – e que deveria ensinar que assim como nos entregamos com nossas gargantas (cordas vocais), braços e pernas às canções e artistas populares, assim também devemos proceder com as obras clássicas, porém entregando nossos corações e alma.

    Parabéns pelo blog, permite a leigos como eu uma fantástica viagem pelo maravilhoso mundo da música erudita, com direito a guia turístico.

  5. Caro Thomas,

    Obrigado pelo seu relato e pelos comentários!

    Os aplausos são mesmo apenas parte bem específica de questões muito mais relevantes, por isso na entrevista eu chego a evitar que esse seja o foco do texto. A sensibilidade do que você relata sobre o ambiente dos concertos é reveladora de algo muito mais essencial, que é o puro interesse do público com o que é mostrado no palco e os possíveis recursos para haver uma recepção autêntica. A princípio é apenas algo para lamentarmos profundamente quando pensamos na inexplicável falta de capacidade de atenção e fruição do grande público brasileiro revelada em espetáculos que exijam a mínima concentração (mesmo em cinemas hoje em dia abundam celulares ligados no Whatsapp – as pessoas não conseguem mais se concentrar sequer em um filme), mas lembro de uma história curiosa: Greg Sandow conta que, trabalhando à frente da promoção de uma orquestra americana, fez a experiência de contextualizar o público a respeito da Sinfonia “Paris” de Mozart, que seria apresentada pela orquestra, informando as pessoas de que o próprio compositor havia revelado em uma carta como preparou certas passagens pensando em gerar os aplausos imediatos do público a quem a obra estrearia na época, e que o público poderia fazer o mesmo no concerto que seria promovido na ocasião. Ele conta que o fato da interação do público ter sido autorizada durante a execução da música, ao invés de blasfemar contra uma audição mais embevecida preservada pelo silêncio, no fim das contas fez com que o público se tornasse MAIS atento ao que era tocado, porque ele se sentia parte daquilo e se preocupava em aplaudir as partes que mais o impressionassem. O relato está aqui: http://euterpe.blog.br/repertorio-post-final.

    Na entrevista eu evito qualquer redução a um formato de concerto como o ideal e adequado, porque é preciso ter em mente que há uma infinidade de necessidades musicais e perfis de públicos e de culturas. Mas no caso do Brasil, às vezes parece mais do que nunca que formatos alternativos responderiam melhor ao que as pessoas em geral atualmente conseguem esperar e procurar em um concerto do que apenas o formato do concerto padrão. Há ideias ousadas com tantas vantagens quanto desvantagens para serem colocadas em prática, mas apenas a dinâmica do que essa relação diversificada do público com o fenômeno da música consegue cumprir já é mais verdadeira do que situações que infelizmente se mostram como farsas.

    O assunto é bom e rende bastante, seja bem-vindo ao blog! Abraços!

  6. Olá Leonardo! Parabéns pela entrevista.

    abraços a todos,
    Carlos Correia
    PS.: quem nunca teve vontade de levantar e aplaudir/gritar/exclamar com um palavrão bem sonoro!/assoviar ou q.q. outra coisa no momento de clímax de uma peça muito bem tocada/cantada???? É como ouvir rock sem nunca querer cantar junto ou balançar a cabeça ou o corpo!!! rs O problema é atrapalhar os músicos e outros ouvintes… Por isso deixo para fazer isso em casa… sozinho… q nem um louco!!!! ;-p

  7. Caro Carlos,

    Obrigado pelo comentário! E sim, eu me identifico muito com você! Em concertos eu não me mexo – me lembro de uma apresentação em que um sujeito na minha frente se mexeu como se estivesse tocando o concerto pra piano de Stravinsky inteirinho, e foi muito desagradável e distrativo, acabei trocando de lugar depois do intervalo -, mas sozinho não raro eu sou pego regendo no ar. Como não reger o ar no clímax que se segue a isto (no minuto todo a partir de 15’05”): https://youtu.be/1AwFutIcnrU?t=905, por exemplo?

    Abraços!

  8. Eu também, quando estou ouvindo música, aos poucos vou me deixando levar, vou me envolvendo, então fecho os olhos e começo a sentir cada nota, cada passagem e quando menos espero já estou regendo no ar rs é muito gostoso ouvir música desse jeito, não tem nada melhor.
    Nunca fui a um concerto, infelizmente, por falta de condições financeiras, só o que conheço é atravéz da internet mesmo.

  9. Ricardo,

    Muito obrigado pelo comentário!

    Heber,

    Lembro de você ter comentado isso mais vezes. Em que cidade você mora? Concertos de um músico ou orquestra sinfônica local não costumam ser caros, e há sempre iniciativas de divulgação que oferecem entrada a preço simbólico (com desconto de 50% pra estudante) ou mesmo gratuita. Eu o incentivo muito a estar atento a oportunidades assim perto de você, de repente há belas apresentações a 5 ou 10 reais que você já poderia estar aproveitando.

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