Há quem ouça uma sinfonia de Brahms procurando prestar muita atenção em aspectos formais. E há quem não preste atenção alguma nessas coisas. É provavelmente impossível definir um padrão adequado de audição: o que é, para além da pura fruição, “entender” uma obra musical? Quanto há para entender? E quanto é realmente importante entender pra que se diga que alguém de fato conhece uma música? Se já é próprio da arte arranjar os seus termos em uma ordem e em um ângulo que despertem a percepção da beleza, o sentido dessa percepção e as suas reais necessidades só serão decididos no próprio ouvinte. MÃS…
…nossa discussão nessa série de quatro posts sobre música clássica, que termina hoje, tem procurado a lição que podemos tirar em pensar o sentido da expressão “música clássica”. E a primeira lição é uma evidência: há uma qualidade intrínseca que preside a técnica com que certas obras musicais são escritas, e é para uma distinção neste ponto que as expressões “música clássica” e “música popular” servem. Como foi visto com detalhe nos dois últimos posts, na música popular a técnica, o modo de fazer a música, prevê em larga medida a apreciação de uma reprodução de formas ligadas ao estilo da música popular em questão. Na música clássica, a técnica prevê a apreciação de uma manipulação de formas escolhidas. É nessa expectativa e na tradição formada por essas posturas diante do objeto musical que os dois gêneros se formam. Mas foi aí que surgiu a questão: se na música clássica a forma é manipulada de tal forma que também carrega conteúdo em si mesma, eu vou ter que aprender a ler partitura e a me tornar um escansionista de formas musicais pra ouvi-la? Em outras palavras: qual será o grau de exigência para a percepção dessa forma musical trabalhada?
Do que eu preciso?
Aaron Copland tem um livro que já no título consegue passar algo de básico e de ambicioso ao mesmo tempo: What to listen for in music (literalmente “Ao que ouvir na música”, ou, na tradução de Luiz Paulo Horta pela Editora Artenova, “Como ouvir (e entender) música”). E o que logo de início ele elenca como a capacidade mais básica para a apreciação musical é a capacidade de reconhecer melodias:
Os “acontecimentos” musicais têm uma natureza mais abstrata, de modo que o ato de reuni-los novamente na imaginação não é tão fácil (…). Se você não pode reconhecer a melodia (…) e seguir as suas peregrinações e a sua metamorfose final, acho difícil que você possa acompanhar o desenvolvimento de uma obra. Você estará tendo uma consciência muito vaga da música. Mas reconhecer a melodia significa que você sabe onde está, em termos musicais, e tem uma boa chance de saber para onde está indo. Este é o único “sine qua non” para uma compreensão mais inteligente da música.
Quer dizer, uma vez reconhecendo que isto:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/05/Schubert-Symphony-N.-9-1.-Introdução.mp3|titles=Schubert – Symphony N. 9 – 1. Introdução]…está presente aqui:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/05/Schubert-Symphony-N.-9-1.-Coda.mp3|titles=Schubert – Symphony N. 9 – 1. Coda]…nós já podemos começar a conversar. Senão, a prática traz essa percepcão naturalmente! O importante é que uma noção “plástica” da música, como essa de reconhecer a melodia, já representa o ouvinte diante da proposta de uma obra musical.
Isso decidido, surge aqui uma postura curiosa: a do ouvinte como aquele que busca se munir de conhecimento e de preparo para enfrentar os desafios da descoberta da beleza em uma obra musical. Tem quem veja nessa imagem algo de emocionante e animador. Tem quem veja algo de obsessivo e chato. O que eu tenho a dizer sobre isso? Duas coisas.
Arte x Beleza e Sentimentos
1) Quando descobrimos que na música clássica a forma também carrega conteúdo, essa descoberta é obviamente um atrativo, e não um fardo, que está reservado para o ouvinte na forma musical. A forma, nesse caso, organiza e amplia a comunicação do belo, e não a obstrui – é como conhecer as falas de um filme estrangeiro, ao invés de ficar com a expressão gratuita e inefável dos atores. É uma atenção comparável ao quanto a leitura de um poema ou romance predispõe o leitor a uma apreciação reflexiva, e isso o eleva a um nível mais alto do que a sensação pura que a realidade já lhe oferece diariamente com coisas perecíveis.
2) As pessoas em geral gostam da beleza e dos sentimentos. Poucas gostam realmente de arte. Anthony Burgess, em seu livrinho de introdução à Literatura Inglesa, lembra que a construção da obra de arte dispõe o diletante à excitação da descoberta da beleza, tal como é a excitação da descoberta da verdade em outras disciplinas. Ou seja: arte, por definição, é depreensão de artifícios, e se há lugar em que nela reside o belo, esse lugar é o reconhecimento da ordem (e aqui há papel para a forma) que a torna uma expressão acabada.
Então aí vai a interpelação dramática, prepare-se: ou você é apenas um amante da beleza e dos sentimentos como sensações puras, ou é um amante da arte e assume o papel ativo de completar o sentido das conotações que ela oferece – afinal, é na atividade, e não na passividade, que surge a emoção da descoberta!
“Por que falar de música?” era uma das questões iniciais da série? Porque é animador falar do que se gosta e pra nos tornarmos ouvintes melhores. :)
Com este post finalmente a série sobre música clássica se encerra, e nos próximos já posso analisar os poemas sinfônicos do Dvorák. Foi uma série bastante didática, mas que tocou em alguns assuntos importantes pra uma maturidade diante da música: pensar que “música clássica” não é um estilo, mas uma história que formou estilos bem diferentes, que ela se distingue diante da música popular pela técnica que torna a sua forma apreciável e, por fim, como fica o ouvinte nessa história toda. Espero que não tenha sido muito óbvia, que tenha gerado alguma reflexão, e que ela possa servir como uma espécie de introdução ao que fazemos aqui em cada post.
Vejam que interessante o que o Greg Sandow fala sobre o “conceito de música clássica”: http://www.artsjournal.com/sandow/2010/05/defining_classical_music_–_a.html
Olá, Ludwig. Não me lembro se até não coloquei o Greg Sandow na página de Links lá em cima, ele tem uma proposta muito boa de situar o entendimento da música clássica abrangendo a música contemporânea, a qual ele ouve e da qual ele gosta mesmo. O livro dele tem demorado pra sair, mas quando sair eu já pretendo até escrever uma resenha por aqui.
Sobre esse quarto capítulo pensando a definição de música clássica, ele faz uma crítica bem apropriada a bobagens que são ditas em toda a parte sobre o assunto, do senso comum a dicionários a princípio respeitados. E então ele oferece a definição dele, que diz basicamente que música clássica é aquela ligada historicamente à cultura ocidental, e que é escrita, pensada e preparada antes da performance. Se o primeiro ponto é tão inócuo quanto irrelevante para uma definição, o segundo ponto é obviamente furado, e o engraçado é que ele mesmo se contesta em seguida, citando exemplos onde tanto a improvisação toma parte na música clássica (esquecendo-se, por não conhecer, da tradição de improvisação organística na França viva ainda hoje) quanto a escrita prévia toma parte na música popular. Quer dizer, que tipo de critério é esse, cujos furos ele atribui às exceções de qualquer definição? Ele também oferece uma visão simplista e por conseqüência grosseira da diferença de visão que a música sofreu no séc. XIX: ele diz que antes do séc. XIX a música não era tida como uma grande arte, mas como um espetáculo, um entretenimento comparável ao que a expressão “música popular” quis descrever no séc. XIX. Se é verdade que a história da expressão “música clássica” tem a ver com a formação de um cânone de compositores que influenciavam o séc. XIX, dizer isso daquela maneira – que música antes disso era menos que arte, mas espetáculo e entretenimento – é uma tremenda bobagem. Inclusive dizer que antes do séc. XIX não se tocava nem se ouvia música antiga é outro exagero grosseiro.
Vejo que o capítulo vale mais pela crítica que faz nas primeiras oito páginas às definições e aos preconceitos impostos à música clássica, com a preocupação de sempre do autor em lembrar da música contemporânea, o que é tão importante que eu mesmo sinto falta de não ter citado mais nessa série de posts. Espero que o fato da definição que procurei dar aqui não falar em época – e o fato de posts futuros procurarem falar mais de música contemporânea, da qual nós somos ouvintes – seja a lembrança necessária de que “música clássica” não exclui o presente.
Mas pior que mesmo procurando um bom tanto na internet, é raríssimo um texto que enfrente a definição de “música clássica” sem se atrapalhar. Muitos até concordam que uma prescrição formal e de valor são insuficientes, mas falta enxergar esse aspecto que diz respeito ao momento anterior à composição, que é a técnica, e que nós exploramos bastante nesses quatro posts da série.
Abraços!
Em uma pequena palestra que dei a um tempo sobre música (http://www.dsc.ufcg.edu.br/~ulrich/musik/musica.ppt), me interessei pela pergunta: O que é Música?
Eis algumas opiniões:
Sua exegese é um mistério
Não pode ser definida, mas pode ser entendida
SCHUMANN: provavelmente é o mistério de suas origens
que contribui para o charme de sua beleza
Música é a mais matemática e a mais abstrata das artes
(New Grolier Encyclopaedia)
CONFÚCIO: música é o nascimento da emoção
Novalis: “Toda doença é um problema musical. A cura é sua solução”
Stravinski “[A música], não pode expressar nada a não ser a si mesma”
Leibnitz: musica est exercitium arithmeticae occulum nescientis se numerare animi (a música é uma aritmética do incosciente)
Hegel: “música é alma que soa para si mesma e se satisfaz”
Wisnik: Música é uma linguagem não referencial,
não designa objetos:
Pode provocar angústia mas não faz medo
Pode provocar alegria, satisfação mas não faz rir
Muito boa série, seu Leonardo… Expõe bem a diferença fundamental entre a música popular e a erudita: o princípio de onde partem uns e outros para compor música realmente é mui diverso. Mas vocês hão de convir que há algumas peças de música contemporânea que não possuem formas inteligíveis… e costuma-se chamá-las de música erudita, sei lá eu por quê… Para mim, são simplesmente música experimental, que nem popular nem erudita é… A música experimental é um caso à parte mesmo!… Mas… após ler a tua série… cheguei à conclusão de que há bastante músicos que seguem tanto a tradição clássica quanto a popular. …Músicos que, pelos temas, pelos ritmos, são chamados de pop, mas que trabalham várias de suas músicas com um princípio formal realmente interessante e ímpar!…
Oi, William.
Esses dois modelos pra explicar o que preside a técnica da composição musical são dois pólos que nos esclarecem coisas importantes na interlocução que eles estabelecem com o público, mas de fato são apenas pólos entre os quais as peças musicais residem variadamente. Em primeiro lugar, não é a técnica que faz o músico, pois temos compositores que se dedicam tanto a diferentes estilos como a esses dois modelos de técnica (Tom Jobim foi um, Piazzolla foi outro, mesmo Frank Zappa). E em segundo lugar, há justamente esses casos ambíguos de que você falou. Acho que depois dessa série fica justamente o convite pra pensarmos nesses casos ambígos. Você tem em mente algum caso específico? Eu consigo pensar no Piazzolla. O Piazzolla, que tinha formação erudita, parece ter feito os dois movimentos: trazer a influência da música clássica para o tango e trazer a influência do tango para a música clássica. Em coisas como o movimento do “Nuevo Tango”, nós encontramos a reprodução dos elementos sintáticos do tango com uma organização formal herdada da música clássica, mas não é uma música que pede pelo esforço do ouvinte em ficar pensando em forma-sonata ou rondó. Mas Piazzolla também escreveu peças como a Fuga y Misterio ou os Estudos para Flauta Solo, em que nós encontramos justamente a manipulação da forma musical, em que a forma carrega conteúdo e compõe o seu sentido (basta pensar na consciência pedida para a apreciação de uma fuga ou do gênero do estudo instrumental), só que marcada com um tempero do ritmo do tango. Ou seja, a construção do sentido musical em ora reproduzir a forma franca de um estilo, e em ora manipular a forma musical pra ela portar conteúdo, é determinada nesses casos fundamentalmente pela maneira como a música é apresentada ao público: se a música é escrita pensada pra ser ouvida com consciência de uma atitude presente na forma, ela se alinha ao pólo da técnica da música clássica, se ela é escrita pensada pra ser ouvida a partir do pacto com a forma reproduzida de um estilo, ela se alinha ao pólo da técnica da música popular. Daí que eu creio que em muitos casos, mais do que olhar para a composição e dizer se ela é sofisticada demais ou simples demais, vale julgarmos como ela foi escrita para o público reconhecer o seu sentido, a sua linguagem.
No caso da música experimental, vale o mesmo raciocínio: ela espera que o público, para apreciá-la, reconheça as atitudes presentes na sua forma, na sua linguagem?, ou ela evoca a sua expressividade reproduzindo formas conhecidas e deixando o seu interesse residir no conteúdo emocional?
Abraços!
Uma das conclusões a que você chegou, Leonardo, foi que a diferença fundamental entre a técnica erudita de composição e a popular reside no modo de tratar e de pensar a música… E agora estamos realmente diante de um problema, devido aos casos em que o compositor pensa a música por um ou pelo outro modo, quanto à forma, mas imprime elementos da outra tradição no conteúdo musical… Frédéric Chopin pensava a forma tal qual aprendeu no conservatório, mas muitas de suas peças carregam figuras rítmicas e melódicas populares na Polônia de então… Outro exemplo é que algumas bandas de rock, e com certeza outras tantas, vão muito além dos padrões originais dos seus estilos, tanto quanto ao conteúdo expressivo como quanto à estrutura de uma música. Normalmente trabalham estruturas livres, mas que ainda assim possuem coerência… Deveríamos então considerar somente a forma pra diferirmos o erudito do popular? Talvez um pouco mais do que isso… Eu simplesmente levo em consideração o nível de elaboração de cada peça: quanto mais detalhes técnicos ela possuir (e não me refiro só à forma, mas também à dinâmica, à orquestração, à técnica instrumental, etc), mais erudição exibirá – é lógica!E podemos sim dizer que vários compositores criam peças não tão “clássicas” assim, e que várias bandas compõem peças de causar inveja a muito estudioso tradicional por aí!… Afinal muitos músicos de bandas estudam, ora!!…
Acho que nesta última mensagem o Leonardo quis invocar um outro elemento nessa definição, que é “o que o público precisa saber de antemão para poder apreciar a música” (ou o que o compositor precisa que o público saiba). No caso de Chopin, as figuras populares são tão trabalhadas em si mesmas que parecem perder (ou transcender) seu significado. Veja a Polonaise em Fá # menor, Op.44, ela É uma polonaise, mas o trio central se transforma numa mazurka. Na Balada em Sol menor, há um trecho famoso onde o tema é reexposto… no pedal! Alguns vão dizer, ué, mas o pedal não faz barulho, não produz sons, apenas sustenta-os; mas para quem olha a partitura, a figura rítmica está lá, marcada com o pé. Agora pense no nível de conhecimento que a pessoa precisa ter para observar isto…
Já as bandas de rock… Bem, confesso minha ignorância no assunto, não sou a melhor pessoa para tecer considerações quanto a elas. Mas qual o nível de conhecimento ela exige do ouvinte?
E sobre a quantidade de detalhes técnicos, não podemos nos esquecer dos compositores minimalistas, como Philip Glass e Arvo Pärt. Eles pregam exatamente a redução ao máximo dos detalhes técnicos, até chegar apenas nos ossos da música. Veja esse vídeo magnífico, o Arvo Pärt explicando uma música dele (Fur Alina):
http://www.youtube.com/watch?v=c08i_9gumJs
É uma música simples, mas muito, muito bem pensada.
Tenho uma outra linha de pensamento sobre os dois estilos. Lembremos que na música, ao contrário da pintura ou literatura em que há dois agentes – o criador e o consumidor da obra -, há três agentes: o compositor, o intérprete e o ouvinte. E é na relação entre os dois criadores – compositor e intérprete – que vejo uma diferença nos dois estilos. Na música clássica o compositor escreve sua composição em uma partitura e pronto. Os intérpretes pegam esta composição e a interpretam. Já na música popular compositor e intérprete estão muito mais próximos. Ou são a mesma pessoa ou trabalham conjuntamente. Tanto é que a partitura perde a sua importância. Muitas vezes nem existe.
William,
É como o Amancio disse: quando Chopin evoca elementos folclóricos, não é pra fazer música folclórica nem pra ficar em um meio-termo entre ela e a técnica do conservatório, mas pra emprestar ao conteúdo expressivo da peça um elemento folclórico AINDA sobre uma forma que continua sendo manipulada, e cuja manipulação continua interessando ao ouvinte. Não é reprodução da forma de um estilo, ao que o público ouça o conteúdo expressivo e pronto, mas AINDA é uma manipulação da forma, com interesses próprios à linguagem da peça, o que a música folclórica não tem nem de forma ambígua.
Quanto às bandas de rock, a que sofisticação formal você se refere? As ousadias da música popular, que tanto podem não ser pouca coisa que podem até transformar um estilo em outro, costumam ficar muito no âmbito do conteúdo expressivo: um ritmo de outro estilo aqui, um instrumento diferente ali, colagens de outras músicas, improviso, mais de uma música ligada em uma só, etc. Mas é muito comum que essas ousadias não deixem de acontecer sobre um ABA tradicional. Portanto, ainda mantenho que não é nem o nível de sofisticação que faz a técnica da peça musical ter esse pólo clássico ou popular (Mozart mesmo pode ter peças muito simples), mas o lugar onde reside o seu sentido: se reside na forma, tanto quanto no conteúdo expressivo, há uma expectativa de o público reconhecer méritos, coisas acontecendo propositalmente na forma, reconhecer mesmo um conteúdo na forma, e é pra isso que a expressão “música clássica” aponta. Se o sentido reside predominantemente no seu conteúdo expressivo, sobre uma forma resolvida de antemão, a expectativa é de que o público reconheça a produtividade expressiva desse estilo, que pode ter tantas possibilidades de expressão com os mais diversos artifícios do seu conteúdo (e aí entra a expressão “música popular”). Faço aqui uma diferença forçada entre forma e conteúdo, mas não é pra dizer que uma independe da outra, e sim pra dizer que na música clássica a forma carrega conteúdo à parte da sua beleza, ou seja, do seu conteúdo expressivo.
Ulrich,
É verdade o que você diz, e podemos incorporar essa tendência às duas técnicas resumidas por “música clássica” e “música popular”. Mas penso que não é um critério rigoroso, porque a aproximação da figura do compositor e da figura do intérprete na música clássica também tem uma tradição: a improvisatória, em que o intérprete cria a música conforme a compõe. Exemplo mais famoso: a cadenza dos concertos para solista. Outro exemplo famoso: o gênero dos “impromptu”. E um exemplo menos famoso: a tradição francesa de improviso ao órgão, viva ainda hoje. Penso que a questão da importância relativa da partitura pra representar a obra musical é, de um lado, um REFLEXO das diferenças entre as duas técnicas (clássica e popular), e não necessariamente um elemento constitutivo entre as duas; e, de outro lado, penso que se trata de um fenômeno relativo: aparentemente, no Renascimento e MESMO no barroco a notação musical também era um pouco livre, tanto nas anotações que eram fixadas quanto na instrumentação.
Abraços!
Isso mesmo, Leonardo. Detectei essa diferença já pensando que não seria a diferença em si mas, como você diz, um reflexo da diferença.
Mas, ainda penso que deve-se pensar um pouco mais na questão dos três atores (compositor, intérprete e ouvinte) e buscar a explicação nos papeis deles nos dois estilos. Tua distinção entre forma e conteúdo pode ir nessa direção. Como o compositor não age diretamente sobre o ouvinte, ele tem que dar mais atenção à forma e na música popular o destaque estaria no que você chama de conteúdo expressivo.
Quero começar dizendo que o Ulrich chegou a uma boa conclusão. Pelo que entendi, ele acabou descobrindo uma das razões pelas quais a tradição erudita de composição se funda na forma (razão que vale sobretudo para a música que vem sendo composta desde o classicismo, quando as apresentações públicas, pelo que sei, passaram a ocorrer com uma frequência cada vez maior): o compositor não pode dar valor unicamente ao conteúdo expressivo da sua peça pois ela não será executada somente por ele. E vocês sabem que o valor expressivo de uma peça depende tanto do trabalho do compositor com as notas quanto do modo como o intérprete o expressará… Sabe-se que um trecho belo pode ficar horrível nas mãos de um mau intérprete…!
Não sei se tenho o direito, pois faz pouquíssimo tempo que descobri este blog de vocês (aliás, muito bom!), mas quero fazer um comentário sobre um detalhe que o Amancio citou referente à “Balada em sol menor”, de Frédéric. Eu conheço a peça, aliás gosto muito dessas baladas… acho-as de um lirismo bem singular, mas admito que nunca pude notar o detalhe referido… E aqui fica uma opinião minha (que não sei nem se cabe nesta discussão): Não se pode querer chamar a um compositor de erudito, estudado, etc, somente por ele ter composto um detalhe tão submerso quanto o de um tema reexposto unicamente no pedal… Faz tempo que não ouço a peça, mas, pelo que entendi, no trecho referido as notas que são tocadas são outras, e apenas o movimento rítmico do pedal é que expõe o tema – é isso mesmo?…
E o Amancio se referiu “à quantidade de conhecimento” que uma peça exija do ouvinte… Eu acho que a expressão seria “quantidade – e qualidade – de concentração e de discernimento”, porque pretender que a música deva ser composta visando unicamente um público bem informado a respeito dos conhecimentos técnicos empregados, seria uma postura discriminadora, convenhamos!… Acho que o Amancio não
quis dizer exatamente isso, mas fica aqui a observação. Eu sou pianista amador, atualmente estudando harmonia, e sinceramente não gostaria de executar em público peças que pressupõem um altíssimo conhecimento técnico para que possam ser prazerosas ao ouvinte. Talvez esta seja apenas uma questão de gosto pessoal, mas… …
E, pra terminar, há sim um tanto de sofisticação formal em ALGUMAS composições de ALGUNS músicos de rock
progressivo, e não apenas variedade de influências no aspecto expressivo. Me recordo agora de ALGUMAS composições de uma banda contemporânea norte-americana chamada Dream Theater, por exemplo, cujos integrantes principais estudaram na Berklee ou na Juilliard – agora não lembro… Percebe-se o desenho de diferentes seções rumando um clímax… variações do tema… esquemas fora do ABA citado pelo Leandro, etc. Me lembro agora dum trecho após um clímax, em que a intenção era rememorar o tema instrumental da composição imediatamente anterior no álbum, cuja letra possuía relação com a da composição em questão (não sei se posso chamar aquilo de simples canção…) – foi feito o seguinte: o tema foi reexposto com uma variação “florida” e leve, porém o acompanhamento foi totalmente mudado, para criar a sensação de serenidade, como convinha após o clímax… Felizmente existem músicos que não se prendem a estruturas básicas da canção popular, como ABABAB, ou ABCBCEC, e criam formas livres coerentes.
Desculpem qualquer coisa, mas a intenção é de dizer que em alguns nichos
do universo musical originalmente popular e “despreocupado” se acham músicos dignos de apreciação. Gosto em particular da técnica erudita, tanto que a estou escolhendo para a minha vida, mas acho que se faz muita injustiça quando se resume uns e outros gêneros populares a duas ou três características, e pronto. :(
Abraços!!!
Ulrich,
O reconhecimento desses três estratos faz sentido sim, e auxilia bastante a conversa. Só tenho a ressalva de que nem sempre essa estrutura de um compositor que não age diretamente sobre o ouvinte, senão dependendo do intérprete, aparece na tradição clássica, como nos exemplos específicos dos quais lembrei.
William,
Acho que você ainda fala da medida do paradigma clássico/popular exclusivamente em termos de quão sofisticada é a forma. E a partir daí um protesto em defesa de qualquer preconceito contra a música popular é muito oportuno, porque não cabe aqui um juízo de valor, mas justamente o reconhecimento de uma diferença de interesse e de relação com o público, e o que acontece é que sim, uma canção popular pode ser mais complexa que uma peça clássica. Só que a apreciação desse tal conteúdo da forma no paradigma clássico chama inevitavelmente a atenção mesmo pra escolha de uma simplicidade nesses termos formais, enquanto que esse, o conteúdo da forma, não é o sentido colocado em pé de igualdade com o conteúdo expressivo da música popular. Por que não é? Porque a música popular dialoga dentro de um ou dois estilos que agregam o interesse, a identidade em torno da qual um público interessado nas suas formas se reúne. Os exemplos que você deu do rock progressivo são muito interessantes, mas tenho a impressão de que dizem mais da técnica indo buscar artifícios para o conteúdo expressivo do que da forma passando por um percurso digno da mesma atenção que o conteúdo expressivo.
Quanto ao hermetismo desse conteúdo da forma na música clássica, eu não acredito que o “conteúdo da forma” seja segregador – acho mesmo que Mozart, por exemplo, é um compositor encantador pra todas as idades e todos os graus de consciência e sofisticação do ouvinte. Mas a arte tem essa coisa de convidar o ouvinte à descoberta, e no paradigma clássico o convite para o conteúdo da forma é muito importante, pois muita coisa foi feita com a forma e o compositor certamente espera que esse conteúdo formal seja apreciado por alguém. Quanto ao exemplo específico do Chopin, ele é um exemplo específico do interesse romântico em recobrar um simbolismo que supera a realidade sonora da execução, é um exemplo bastante específico mesmo, mas que reflete bem o tipo de coisa que acontece com interesse no paradigma clássico, e não no popular.
Abraços!
Aliás, este post mesmo foi chamado de “a desumana exigência da forma” pensando nesses hermetismos. :)
Continuando meu raciocício: Na música popular o intérprete tenta envolver os ouvintes como um todo, ele adora quando eles dançam, balançam os braços ou repetem o que ele está cantando. Já na música clássica o intérprete toca para cada ouvinte individualmente. Cada ouvinte está aí como se estivesse sozinho ouvindo a música.
O fato de no final todos aplaudirem ou, em algums casos, aplaudirem durante a execução (na ópera, p.ex.) não invalida este raciocínio.
Olha… Se formos focar nesse hermetismo e no título deste post, a discussão tende a prolongar-se!…porque então partiríamos pra questão de quão profundamente o conteúdo da forma pode agir no ouvinte…Há peças em que a estrutura formal só engrandesce a expressão lírica (que – sejamos humanos!- é de longe a mais perceptível aos sentidos); porém, há peças – e não poucas – em que o conteúdo expressivo não expressa nada!, e a arte reside apenas na manipulação dos temas primários e secundários ao longo de centenas de compassos. É claro que mesmo em algumas dessas peças é possível encontrar uma destreza formal tal que a peça possua beleza (oriunda da ordem apenas), mesmo que as melodias sejam simplórias e a harmonia seja extremamente convencional (o que aliás não chega a ser um defeito, tendo em vista a total ignorância harmônica de alguns músicos pop!…)… Mas, pelas peças desse caráter que eu conheço (admito não serem lá muitas…), na maioria dos casos o compositor dá tanta, mas tanta atenção a detalhes formais (esquecendo do mais simples sentido expressivo), que seria preciso ser um analista-escansionista de formas para apreciar o trabalho ultradetalhista do compositor!… Acho que certos compositores de fato exageram bastante em detalhes formais, e isso acontece sobretudo no gênero concerto. Chega a parecer uma obsessão! Mas tudo isso poderia ser atenuado, e o compositor poderia muito bem continuar com a sua obsessão por detalhes quase ínfimos, se ele, na sua mania, não se esquecesse de um princípio básico na música, que ajudaria demais o ouvinte a poder apreciar toda a viagem através da estrutura formal: A REPETIÇÃO!
Acho que o seu comentário está absolutamente condizente com 90% dos casos, Ulrich, mas devemos nos lembrar de que há gêneros populares que são apreciados de maneira mais concentrada, similar à das salas de concerto, como MPB e AOR (adult-oriented rock, relativamente popular no mundo todo).
Alô William! Sinta-se à vontade para dizer o que quiser aqui, vc tem todo o direito do mundo! :-)
O lance da Balada do Chopin eu não descobri sozinho, eu li no livro do Charles Rosen, A Geração Romântica, onde ele faz uma extensa descrição dos objetivos e características da primeira geração romântica, em especial Schubert, Chopin, Mendelssohn e Schumann. (Mais de 900 páginas para falar de apenas 20 anos de música!) Achei na internet a página exata onde ele fala da balada n.1, aqui ó (Santo Google!). Como o Leonardo bem indicou, o fato de compor “com” o pedal faz parte do ideal romântico. Não é algo que se possa ouvir, aliás, a maioria destes detalhes técnicos passa despercebido em qualquer gravação. E com certeza vc não precisa saber ler partitura pra apreciar a música. Vc não precisa nem saber a diferença entre polonaise e mazurka, ou que a forma carrega conteúdo – a música é para todos, e há muitas maneiras de apreciá-la. Mas o que me comove (e me comove mesmo!) é saber que, quanto mais vc estuda, quanto maior o seu conhecimento em música, maior é o prazer da apreciação. É um poço sem fundo, uma fonte inesgotável, quanto maior o seu conhecimento técnico, mais segredos escondidos vc encontra para ampliar o seu prazer. Parte da razão de ser deste blog é isto, é mostrar ao ouvinte comum que há um universo muito maior atrás dos sons. E este post em específico quis mostrar que é prazeroso procurar estas informações, que não é um fardo tentar descobrir a forma que há por trás da composição.
Já a questão da existência de música experimental, de peças que pressupõem altíssimo nível de conhecimento ou que exageram mais no cuidado da forma do que no conteúdo… sim, é questão de gosto. E inevitavelmente passaremos à discussão da beleza, o que é belo para um e por que o mesmo não é belo para outro.
Ulrich,
Mas como a gente vê no último post do Randau – http://euterpe.blog.br/musica-e-cultura/uma-nota-sobre-as-boas-maneiras-em-concerto -, esse ritual da música clássica ser tocada e apreciada quase como uma missa, individualmente, como a metáfora individual que conversa com o ouvinte, é algo relativamente recente. Lembro por exemplo que o elemento da dança no barroco é fundamental. Fora o elemento do espetáculo na música clássica, os balés, as óperas, o apelo a um grande evento. E a isso ainda acrescentamos os exemplos do William na música popular. Enfim, é uma questão que varia bastante, difícil de estabelecer em absoluto. Mas os três estratos dos quais você lembrou ainda são muito úteis pra toda essa conversa.
William,
Lembrei da questão do hermetismo pra dizer basicamente o que o Amancio disse: arte é descoberta, e os segredos que ela guarda não são uma segregação, mas uma riqueza que na maioria dos casos é tão oportuna que vale a pena se predispor não passivamente, mas ativamente pra descobri-la. O post foi bem um incentivo a isso, que não custa nada e NÃO É mais artificial do que a própria linguagem da ARTe sempre é.
Você tocou no ponto da crítica à linguagem hermética de certas composições, e aí é realmente outro assunto. Não é de se estranhar que nem sempre um compositor acerte a mão entre a forma e o conteúdo que ela carrega, mas também não dá pra esquecer daquela lição valiosa em música: a de que a primeira impressão nunca é a que fica! :D
Abraços!
Prezados Leonardo e William,
vocês têm toda razão e apontar os contra-exemplos a minha teoria. Concordo com todos eles. As Cadenzas nos concertos clássicos, o b.c. que no barroco era preenchido pelo intérprete e, do outro lado, a forma mais concetrada de ouvir MPB e até o Jazz. Outro exemplo é a tal “Tafelmusik” do barroco, música a ser tocada durante as refeições.
Minha posição é que a fronteira entre ‘clássico’ e ‘popular’ não é clara, existe muita música no limiar. Antes do período clássico esta diferença ainda era mais difusa.
Assim, penso que minhas colocações não seriam regras absolutas mas algo que leva em direção a uma classificação. Sujeito a contra-exemplos.
Mas e essa coisa da forma carregar conteúdo a ser apreciado pelo ouvinte, não cola como um bom critério entre as duas técnicas?
Leonardo,
Acho que esse é sim um bom critério, mas o padrão popular de composição que você citou (em que um modelo estrutural, ou estilístico, típico, é SEMPRE reproduzido) passa a ideia de que ele não é nunca manipulado, como se as mais variadas canções dentro de um mesmo gênero popular tivessem todas a mesma estrutura, e só variassem de uma pra outra os motivos melódicos, rítmicos, harmônicos, e timbrísticos. Esse critério pode valer muito pra se distinguir o modo extremamente “pop” de se criar uma canção: basta rascunhar uma letra pseudofilosófica, improvisar uma melodia vocal sem centro tonal nenhum, tocar no pobre violão uma sequência qualquer de três tríades, então cantar a estrofe, tocar e cantar o refrão num ‘forte’ bem rude (como se em um minuto, do nada, se chegasse num clímax épico!), então dá-lhe estrofe de novo, dá-lhe refrão de novo… até, por um fenômeno ímpar, aquela melodia vocal horrenda grudar na sua cabeça como um parasita, depois de dez vezes repetida…!
O critério não é ruim não, é inclusive muito mais inteligente do que eu posso expressar aqui, mas reitero – prometo que pela última vez! – que há mais elementos relativamente comuns a ambas tradições do que sonha a nossa filosofia! – não vou escrever “vã”, porque vã não é!…
Fica aqui um conselho: não se deve pensar em música popular tendo em mente apenas as modas do momento; lembremo-nos das raízes populares que levaram às aparições de Astor Piazolla, Gershwin, Beatles, Tom Jobim, etc.
Agora um comentário sobre a primeira impressão nunca ser a que fica… Bem lembrada, essa lição, que inclusive não vale só na música. Mas eu sou contra os exageros. Eu não pensaria em compor uma peça com mil e um segredos que demandariam dez audições pra serem descobertos, porque, apesar de estarmos na era das gravações, o momento máximo da música não pode mais deixar nunca de ser aquele em que as luzes diminuem, os sussurros cessam, os intérpretes respiram fundo, e… a música vive…! De que adianta o intérprete dar ali a sua vida se os ouvintes não puderem, naquela única audição, desfrutar consideravelmente da música? Acho que são interessantes peças com muitíssimos detalhes, mas há de se criar uma espécie de concerto própria a essas peças – do tipo… os músicos tocam e um analista explica… ou então um concerto com várias execuções da mesma peça, de preferência feitas por intérpretes diferentes… E seria interessante, não? Mas acho que já existe algo similar em forma de concertos didáticos…
Enfim, a minha opinião é a seguinte: é pertinente que se queira explicar por que a tradição erudita compõe um universo à parte da tradição popular, – muita boa iniciativa, a desse post, viu?! (mas essa era só uma das iniciativas, não é?). Mas é uma questão que se for aprofundada, mostrará que é bem difícil descobrir uma postura técnica 100% única de uma ou de outra tradição, porque elas vivem em contato uma com a outra, afinal vivem num mesmo espaço – o da civilização ocidental. Pelo menos a minha humilde vista por ora não divisa esse marco de fronteira… Mas você citou um excelente critério, Leonardo, que vale pra generalizar sobre a maioria dos casos, creio eu… Ainda não conheci A regra que não possui exceção…!
Então, William, tem mesmo algumas sutilezas, que eu tenho tentado incrementar nesse espaço de comentários. As sutilezas das quais a gente já falou aqui mesmo e que são muito importantes pra verificar esse critério são as seguintes:
Objetivo da série
Primeiro, o objetivo da série foi até mais modesto do que uma teoria generalizante que forçasse uma separação em um fenômeno que, no fim das contas, continua sendo igualmente “música” em todos os casos: o objetivo foi antes traduzir o sentido das expressões complementares “música clássica” e “música popular”, e ver se, na qualidade de ouvintes, dava pra aprender alguma coisa desse sentido.
Pólos contingentes
Daí que, como eu disse no começo da conversa, a definição desses dois paradigmas técnicos são pólos, como que tendências entre as quais as peças musicais residem livremente, e não uma gramática estruturalista. Nisso é que citei o caso do Piazzolla, que fez constantes trocas de um pólo ao outro dentro da sua obra.
Forma x Ocasião e público
E o dado fundamental pro entendimento desses paradigmas técnicos é que eles não se sustentam por um juízo de quão sofisticada é uma peça, quão elaborada é a sua forma pra decretarmos que “Ah, aqui a forma tem conteúdo”. Como eu também disse, uma peça tradicionalmente clássica pode SIM ser mais simples que uma peça tradicionalmente popular. Por quê? Porque, como eu lembrei com muita importância, não é possível falar em gênero sem o elemento da ocasião e do público. Ou seja: essa interlocução do conteúdo da forma de uma peça musical depende diretamente da apreciação de um público. Daí que eu comparei: na música popular pode haver artifícios muito avançados na forma, pensando-se justamente no efeito pro seu conteúdo expressivo. Mas essa conteúdo formal está em pé de igualdade com o conteúdo expressivo? No sentido de haver um percurso de acontecimentos formais que se oferecem ao público pra ser apreciado tanto quanto o conteúdo expressivo? Pode até existir em algum grau – o Jazz mesmo tem uma função muito importante na noção de variação, e harmonias muito intrincadas (embora uma estrutura geralmente simples e sem o trabalho modulatório). Mas não há uma interlocução equivalente entre forma e conteúdo, simplesmente porque ainda resta um elemento de identidade estilística que não só já está resolvido entre músico e público, mas também porque esse elemento de identidade estilística tem todo o interesse de ser preservado, de ser legitimado a triunfar sobre as possibilidades que o músico alcança a partir desse estilo. E na técnica clássica? Na técnica clássica, como eu disse, mesmo a escolha pela maior simplicidade tem uma relevância como conteúdo formal. Se um compositor escolhe ser simples, isso tem uma conseqüência pra expectativa formal, é uma atitude da forma. E de novo: o que é que determina quando é que a simplicidade na música é clássica e quando é popular? A interlocução com um público. Quer um exemplo? Digamos que uma banda em um show de rock toque o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven com guitarras e baixos e bateria. Ou seja: é uma colagem de uma peça clássica, então a música é clássica? Eu diria que na verdade essa colagem transparece justamente a função da ocasião pra essa noção de gênero: dificilmente seria uma peça “clássica” nessa ocasião, porque essa colagem muito provavelmente estaria sendo feita com o objetivo do empréstimo de uma estética pra um efeito novo no estilo desses músicos. O tal conteúdo formal dificilmente seria favorecido, o coloriiido da polifonia, etc. O que fica, inevitavelmente, é o hit, mesmo com o empréstimo de todos os artifícios formais de Beethoven.
Ressalvas
Fora isso, eu mesmo consigo pensar em algumas outras ressalvas desse nosso entendimento entre “clássico” e “popular”. Primeiro: na música clássica não existe a noção da reprodução de um estilo? Não existe um “estilo” concertante o qual Mozart, por exemplo, seguiu nas suas obras? E outra: como pensar essa noção fora do Ocidente, como na chamada “música clássica indiana” por exemplo? Tenho respostas pra essas perguntas, mas por hoje é só, ou então eu precisaria escrever um livro inteiro. XD
O livro inteiro seria bem-vindo :)
De resto, estou apreciando imenso a discussão. Tem um aspecto interessante que não foi abordado ainda, que é o da tradição, dos costumes.
Cito um exemplo: George Gershwin. Ele compôs uma quantidade enorme de canções, sejam avulsas, sejam para musicais da Broadway ou para filmes de Hollywod. Mas, por mais que suas canções sejam deliciosas e tal, no mundo específico da canção, ele tem importância igual ou até menor do que outros expoentes como Jerome Kern, Irving Berlin ou Cole Porter. O nome “Gershwin” ficou inevitavelmente ligado à tradição clássica que ele reverenciou em meia-dúzia de peças de concerto, que, de maneira ou outra, lhe garantiram a importalidade. Existem, na discografia, muito mais gravações da “Rhapsody in blue” do que coletâneas de suas canções. Gershwin transformou-se, por força do hábito, em um “compositor clássico” como Bach ou Beethoven.
Poderia dizer o mesmo dos Johann Strauss, ou de Émile Waldteufel, ou de Albert Ketèlbey, ou mesmo de obras como as “Danças húngaras” de Brahms. Mais que qualquer coisa, são “clássicos” porque assim a tradição quer.
Exemplo inverso: Kurt Weill. Ele compôs sinfonias, concertos, cantatas e muitas outras obras totalmente devedoras de uma tradição “clássica” alemã, exatamente como um Hindemith ou um Schoenberg. Mas ele é principalmente lembrado por obras como “A ópera dos três vinténs” ou “Lady in the dark”, que lhe incutaram os selos “cabaré”, “jazz”, “musical”. Não raro, quando alguém ouve seu Concerto para violino ou a sisuda Sinfonia no. 1, assusta-se ao saber que o autor é Kurt Weill.
No Brasil, o mesmo paralelo pode se fazer com Radamés Gnatalli – que, no entanto, segue sem fama em nenhum dos mundos, seja popular, seja clássico…
Ludwig,
É verdade, nesses casos o nome do compositor é associado a uma tradição clássica, enquanto a sua obra transitou nos ambientes dos dois gêneros, clássico e popular. Mas pensando não no compositor – que há muitos ambidestros -, e sim nas peças, lembro que acho que as Danças Húngaras de Brahms ou as Danças Eslavas de Dvorák ainda são uma experiência bem peculiar: elas emulam totalmente a inspiração popular, mas não são uma emulação ingêneua – há um encontro entre o elemento popular e o maneio da composição que rendem uma experiência em que o indivíduo se apropria de uma voz coletiva, do gênio coletivo. É uma questão que me interessa bastante e eu gostaria de um dia voltar a ela em um post.
Mas coisa parecida em que eu já pensei e que até esqueci de mencionar entre as ressalvas é o seguinte: música folclórica reconstituída de outros períodos históricos é música clássica ou popular? Por exemplo, as canções acríticas dos bizantinos? Greensleaves? Vejo que nesse caso uma arte antiga e popular é coletada de tal forma pela tradição que o nosso contato hoje com essas peças depende de uma contextualização, de uma informação a respeito da sua linguagem pra ser minimamente apreciada – quase o equivalente ao repertório de conhecimento de gêneros do ouvinte de música clássica! Aí parece acontecer essa coisa engraçada, da gente ouvir música popular antiga com um esforço histórico que torna essa fruição mais erudita.
Enfim, muitos casos ambíguos.
Ah, é: ia lembrar, além do caso do Johann Strauss Jr., o caso do próprio Mozart, que escreveu música de salão, músicas em que vale o esmero e a elegância da escrita instrumental e a inspiração do belo no ambiente, mais do que qualquer caminho formal, mesmo que ele empreste a organização formal do paradigma clássico.
É… Eu me vejo obrigado a reconhecer que na tradição popular a expressividade talvez sempre seja mais importante do que qualquer estrutura formal… Afinal somos humanos!… e deixar a sensação provocada em nós por uma certa sequência melódica, ou harmônica, em segundo plano, pra atentar friamente, e dar maior relevância, a questões de sintaxe musical, me parece um pouco antiestético… Não se pode ler um romance, ou um poema, cujos enredos e temas nos sejam alheios e pouco interessantes, e ainda assim dizermos que apreciamos aqueles escritores só porque suas obras têm coerência. Mas eu sei que eu já estou levando a discussão por um lado mais pessoal, e que não são esses detalhes que estão em jogo aqui…
E é curioso mesmo que se ouça música popular antiga com uma atitude erudita… Mas a explicação está na própria palavra “erudito”: “possuidor de vasta e variada instrução”. Levando em conta que a música folclórica antiga hoje já não é mais popular, pode-se dizer que estudá-la e apreciá-la é uma atitude erudita, mas, quanto a dizer se a música em questão é de raiz de fato popular ou não, é óbvio que dependerá de cada peça individualmente.
Sobre existir a noção de reprodução de estilo no universo erudito, ou a questão “é-clássico-ou-é-popular-?” permanece subordinada à importância individual dada à forma ou sou eu que já começo a ficar obcecado com isso!… Estou longe de ser um expert em análises estilísticas, mas acho que é aqui que se deve citar a diferença entre o que seria “estilo” e o que seria “forma”. Estilo é um modo singular, único, de lidar com alguma prática que geralmente já tem um padrão convencional. Nasce um estilo, seja particular a uma única pessoa, ou a uma escola, toda vez que o modo de lidar com a prática em questão foge consideravelmente aos convencionalismos. A noção de estilo, no caso do estilo “concertante” referido, está ligada sumamente ao material expressivo da música – é ou não é, Leonardo? Já a forma… acho que dispensa explicações, a esta altura da conversa! …Ou alguém tem dúvida?… Pergunto isso porque a noção de estrutura formal na música não é muito fácil de ser entendida por quem nunca leu ao menos um livro a respeito…
E por último… como pensar na noção “clássico” fora do ocidente? Me desculpe, mas eu não conheço sinceramente nada de música oriental… Imagino que a palavra “clássico” então carregue o simples significado dos dicionários, o de algo tradicional (e no exemplo citado talvez se trate de música folclórica…) Aí já entramos em questão de palavras…
Só pra deixar claro que esse tal “conteúdo formal” não concorre com o “conteúdo expressivo”… São simplesmente coisas que estão lá quando ouvinte quiser apreciar. Não é incomum o tipo de ouvinte de música clássica que não faz idéia do conteúdo formal, ou mesmo aqueles malucos que estudam matemática na música sem serem ouvintes muito entusiasmados. No entanto, de novo: o fato é que esses conteúdos estão lá.
E sobre ter que dar conta de ouvir tudo na primeira audição, vale lembrar que em muitos casos há uma distância de tempo, espaço e ocasião entre você e a obra que foi escrita. Quer dizer: um brasileiro ouvindo um MP3 no fone de ouvido enquanto conversa no MSN está em outro ambiente, outro megacontexto cultural, outra mentalidade, outro tempo e outro espaço da composição de uma música do início do século XIX em um salão de câmara privado de uma colônia da Alemanha ocidental. Vale a nossa humildade no esforço de sempre alcançarmos a obra.
Olá a todos,
A discussão do que é “clássico” e do que é “popular” vai recair em uma outra discussão: “o que é arte?”; “o que é entretenimento?”; e assim por diante.
São questões filosóficas muito interessantes, mas difíceis de se chegar a algum lugar concreto, definitivo!
Em um grupo de música, com pessoas que considero de alto gabarito, no qual participei sobre tais temas, ficaram discórdias entre eles…
E por isso, creio eu, que o Leonardo, através destes 4 posts sequenciais, não quis esgotar o tema, mas talvez incrementar em um ponto a pensar: “conteúdo” x “forma”.
Leiam abaixo algumas considerações:
Como exemplo, outro dia coloquei para tocar a música “Georgia” de Ray Charles, canção lindíssima, muito bem trabalhada, e emocionante, a um visitante, e logo qdo iniciou a música perguntei a este que tipo de música era e logo me respondeu “música clássica” por ouvir as cordas iniciais sendo tocadas. A instrumentação utilizada também leva a erros de definição…
E se fizesse a música em outro arranjo? Se colocasse um barítono para cantá-la, mantendo os instrumentos de cordas e trocando os outros instrumentos elétricos por acústicos, ou por outros de sopro, etc… Talvez essa música poderia nos enganar e alguém poderia dizê-la ser “clássica” como muitos pensariam. E a forma desta música é a forma a-b-a` (usando-se os devidos ritornellos), onde o b é o contraste e não o refrão. E tal forma é muito utilizada pelos “compositores clássicos”.
Eu mesmo, que me considero atualmente compositor erudito ou de música clássica, e que já compus rocks, tenho composto diversas músicas na forma a-b-a`, e também tenho canções que muitas vezes recai na forma a-b. Pois, muitas vezes, a música fica a mercê da letra, e não ao contrário.
Outra questão, que talvez recaia no tema “conteúdo”, é sobre as considerações harmônicas. Poderia dizer que uma música dita popular não é tão rebuscada harmonicamente, mas de fato estaria enganado, pois o chorinho, por exemplo, com sua forma rondó 99% predominante, tem suas diversidades harmônicas, regiões em que se encontram cada tema, muito próximas, se não iguais, a muitas músicas “clássicas”. Mas podemos encontrar pouquíssimos exemplos de músicas populares que há tal riqueza harmônica, com passagens modulatórias, etc. …
Beatles, que ousou na manipulação dos acordes, nos motivos, e outras características, sempre associada a “casca” do rock, e o Led Zepelin, que ousou na formação de “novos sons”, novas formas, são exemplos de uma mistura de “entretenimento, popular, e arte(?!)”. Poderia citar outros grandes, como Queen, Pink Floyd, etc.. Também não poderia deixar de citar Chico Buarque, mas acho que já entenderam o que quero dizer.
Poderia citar um exemplo ao inverso: quem já analisou o rondó Marcha Turca de Mozart? A simplicidade é grande, mas a inovação (na época que foi escrita) também o é.
Citei poucos exemplos que por mais que queiramos determinar algo que nos faça classificar o que é um e o que é outro, vamos cair em erros. Pois, talvez, o mundo da música, em suas diversas dimensões, não seja algo classificável, como preto e branco, mas sim, talvez, em algo “colocável”, em tons de cinzas, e nunca somente branco ou somente preto.
Mas uma coisa eu considero, talvez a música erudita (clássica, concerto, de linguagem) não devesse ser chamado realmente de música erudita. Não considero a música sendo erudita, mas o compositor, pois é ele que tem que ter em mãos todas as ferramentas disponíveis, e saber usá-las para não ser guiado, mas sim, guiar a música sendo feita.
abraços a todos,
Carlos Correia
tecnicasdecomposicao.blogspot.com
Pois é, Carlos, creio que realmente não há só preto ou branco mas há muitos cinzas no meio.
Outro dia pensei em uma música que me parecia ser um contra-exemplo da classificação mas, pensando na colocação forma X conteúdo, já mais parece confirmar a teoria de Leonardo.
Foi o prelúdio em dó-maior do cravo bem temperado de Bach. Ninguém a chamaria de música popular mas, é uma música de conteúdo bastante simplório (interpretável e inteligível por quase qualquer um) mas de uma forma nada trivial. A sequência de harmonias na repetição do mesmo tema o tempo todo, é um autêntico Bach.
Carlos, os seus exemplos são todos de grande interesse, mas toda a discussão nos comentários a esse post passam pelo que você disse. Já chego aí.
Ulrich, preciso esclarecer mais uma vez uma coisa importante.
O fato: eu não disse que a música clássica é determinada enquanto tal por ser mais sofisticada que a música popular. Nem por definição, muito menos por comparação. Se formos tentar fazer uma gramática de definições formais ou conteudísticas da música, nós nunca vamos encerrar as possibilidades de um gênero. Até porque, uma vez determinado um parâmetro para um gênero, basta um compositor ir lá e contradizê-lo. Eu nunca disse nem pretendi fazer isso.
A distinção entre música clássica e música popular reside fundamentalmente no diálogo com o ouvinte. A sofisticação ou não da música é apenas reflexo disso. O que eu disse é que no caso da música clássica, a forma carrega conteúdo. Mas carrega conteúdo de que maneira e pra quem? Carrega conteúdo com uma noção plástica dos acontecimentos pelas quais a forma passa, desde a filosofia dialética da forma-sonata até as sinuosidades de toda raíz da “word painting” do Renascimento; desde as piadas puramente formais de Haydn até a retórica da música negociando as próprias idéias em Beethoven. Ou seja: “algo” acontece na forma que tem significado expressivo, artístico. E pra quem essa forma tem conteúdo? Para o ouvinte, obviamente. É uma interlocução disponível ao ouvinte, uma proeza residindo na forma que convida à apreciação. Se o ouvinte não faz idéia desse conteúdo da forma, não tem problema: o importante é que esse conteúdo está lá pra quem puder percebê-lo, e ele é voluntário o bastante pra responder pelas ambições e pelos méritos da composição como um todo.
Já na música popular todo artifício formal não prevê nem tem interesse em prever ouvintes pensando em forma-sonata ou rondó, mas em apreciar o seu conteúdo expressivo, literalmente, apreciar a busca de um “som” de qualidade. Aí você pergunta: ué, mas na música popular não acontecem coisas na forma?, não há vários exemplos disso? Primeiro: existe um limite pra manipulação formal de um estilo da música popular, porque se essa manipulação for muito radical esse estilo pode simplesmente se transformar em outra coisa. Existe um elemento sintático entre músico e público que os faz orbitar em torno de uma identidade estilística, e é a variedade do conteúdo expressivo, bem mais do que da forma, que provará a produtividade e mesmo originalidade desse estilo. Segundo: a música popular não só pode contar com artifícios formais, como pode perfeitamente ser mais sofisticada ou complexa que uma peça clássica. E agora? E agora que essa manipulação formal, pela interlocução com o seu público, não está em pé de importância com o conteúdo expressivo da peça musical como acontece na música clássica. E o mais importante: essa manipulação formal tem MUITO MAIS, senão EXCLUSIVAMENTE, o fim de um efeito estético no conteúdo expressivo do que carregar conteúdo em si mesma!
Ou seja, quando a forma musical começa a carregar conteúdo em si mesma e a se oferecer pra apreciação do público, estamos começando a falar de música clássica. É a partir disso que toda essa discussão desse critério deve ser feita: nesse dois pólos de definições técnicas, quais peças residem mais intermediariamente?, como devemos pensar no tal conteúdo formal quando uma peça clássica é muito simples?, etc., etc., etc.
Portanto: a distinção que eu explorei não tem a ver com a sofisticação de uma peça musical, mas com o diálogo proposto com um público. Que a música clássica TENDA a ser na GRANDE maioria das vezes mais sofisticadas é um reflexo dessa interlocução, que tem na forma o status de conteúdo apreciável. Mas não é uma regra.
Acho que vou escrever um post sobre isso só pra esclarecer esse aspecto, mas uma mensagem acima em que eu já tinha organizado bem melhor toda a idéia dessa série foi esta (clique aqui).
Abraços!
É verdade Leonardo. Eu reli os posts com mais atenção e vi que já falaram sobre muito do que disse no meu último post.
Bem, pelo menos serviu para colocar mais exemplos no universo desta discussão!
Abraços a todos,
Carlos Correia
tecnicasdecomposicao.blogspot.com
Brilhante série, leonardo. Muito esclarecedora, edificante.
E os comentários então, o que dizer?
Porém, notei uma ausência: o Villa. ninguém falou do Villa.
Obrigado, Emerson! Muito bom saber que está nos acompanhando.
E é verdade, no séc. XX tem muita gente experimentando como que a abolição das barreiras de gêneros na arte, e há muitos diálogos resultantes do trabalho de compositores com todo tipo de influência que eles sofriam às suas voltas. O Villa-Lobos, por um lado, como Bartók e Kodály (mas mesmo Beethoven e Brahms em algo parecido anteriormente), teve um trabalho muito curioso de utilizar música folclórica local coletada e incorporar o seu material na sua própria linguagem moderna (daí seus “arranjos” de temas bem populares soarem tão surpreendentes no seu Guia Prático ou nas Canções Típicas Brasileiras), e por outro ele tem, como Ginastera na Argentina, por exemplo, reais investidas em formas populares como o choro para violão (também não consigo deixar de lembrar de Ernesto Nazareth). Mas a técnica que ele usa pra escrever essa música é uma técnica de violão erudito, instrumento que no seu tempo mesmo ia ganhando um prestígio maior. Ele também tem a Suíte Popular Brasileira, em que mistura danças estrangeiras como a mazurka e a polka ao estilo brasileiro, é muito divertido.
Isso mostra, pra reiterar, que o critério do peso do convite à apreciação da forma e sua função na música não divide, na prática, a música em dois pólos extremos intransitáveis, mas nos guia um pouco nas perspectivas que terminam incorporando obras e compositores a uma ou a outra tradição e público.
Nossa, o blog de vocês é realmente incrível, fala de uma maneira tão simples e próxima que faz com que a música clássica pareça mais acessível. Em outro post vocês fizeram uma interpretação belíssima sobre uma sonata de Beethoven (No.9.Op.47); seria muito interessantes se vocês fizessem o mesmo com outras composições, como por exemplo, a 9 sinfonia de Schubert. Eu, sinceramente, não entendo nada de música clássica, no entanto, essa abordagem que explora o seu significado dá vontade de conhecê-la muito mais.
Cris,
Obrigado pelo comentário! :) Antes de tomar nota da sua sugestão sobre a lindíssima Nona Sinfona do Schubert, me apresso em vir recomendar a você a categoria “Análise de obra” (clique aqui!), que segue a linha desses posts que você mencionou.
Abraços!
Já ha algum tempo venho devorando os preciosos textos deste blog. Devidamente motivado pelo que venho lendo recomecei minhas solitárias audições pelo particular mundo da música clássica, e, quanto mais leio e absorvo conhecimento nesta área, mais me conscientizo de que: ao saber e entender mais naturalmente gosto mais. Nos três poster’s anteriores e mais este quarto e último post, esclarecedor. entendi o postulado FORMA e CONTEÚDO, e acompanhando os exemplos sonoros que enriquecem o texto, isso ficou muito claro que quanto mais eu souber sobre essas coisas, essas técnicas; quanto mais eu captar os detalhes, mais me encantarei e mais elevarei meu prazer apreciativo musical. Sei lá! Tem algo de velado, de secreto, de seleto, exclusivo e para poucos, nessa coisa de Música Clássica/Erudita/Concerto/Exata/Leitura. As próprias “pautas” (não sei se o termo esta correto) se assemelham a antigos pergaminhos e sagradas escritas místicas, onde so alguns iniciados saberiam entender. Fascinante isso.
J.Farias-PE
Leonardo.
Puxa vida, tchê, essa série te deu trabalho! Admiro muito a tua pesquisa e acurácia de pensamento. Mais ainda o tempo que dedicas a “nós”, os diletantes e os aposentados. Nao só nos alentados artigos, como nas extensas réplicas. Deves trabalhar também, eis que Euterpe não enche panelas,apenas ouvidos e almas.
Leo, vou meter um pouco de farinha nesse caldo, talvez até chovendo no molhado,pois muito aqui foi escrito.
Em todas as vertentes artísticas, poesia, pintura, música, cinema, filosofia, foram expressas polêmicas por vezes bizantinas acerca de “forma versus conteúdo”.
Uma coisa depende da outra . Se um dos dois for ruim, o resultado nao poderá ser bom. E é difícil separar os “elementos” que constituem Forma dos que “formam” o Conteúdo. A mensagem do orador depende da estética. São tão comunicativos Mozart e Bach porque eles são excelsos na forma (“absoluta”ma non troppo) e também em sua essência, seu pensamento. Você falou bem em algum lugar, que não foi o romantismo que inaugurou as emoções. Ele apenas as privilegia. Comparativamente, julgamos um Handel discreto ante os estertores de Mahler, mas quanta emoção há nas árias de Handel. Esse barroco, hoje tocado com conjuntos minúsculos que somem perante uma OSESP, nasceu como uma reação extravagante à austeridade da Renascença. O barroco é emotivo, rebuscado e trágico também. Os românticos apenas exacerbaram o drama e a instrumentação. Então, pouco sentido teria escolhermos entre a música absoluta e a programática. Em ambas há obras ruins, por deficiência da forma ,ou do conteúdo, ou das duas coisas, eis que conteúdo também é forma e forma também é conteúdo.
Raramente sinto possibilidade de diagnosticar onde estah a deficiência. Alguns poemas de Liszt talvez divaguem toscos no virtuosismo poético, assim como Max Reger é um cara que nao engulo, porque demasiadamente “formal-absoluto”. Mas ,em geral, aparência e essência fazem um amálgama que nao mais se divide.
Por muito tempo, consideraram o Cravo Bem Temperado como destinado apenas a estudantes, sem encanto melódico,etc….Porém , há muito fascínio, nao sei se cerebral ou sensorial, numa fuga.
Assim temos a questão estudo versus curtição. Se a gente se instrui um pouco na música, passa a “curtir” mais. É como aprender a apreciar vinhos. Ninguém tem obrigação. Mas vale a pena. Isto explica a questão popular x erudito, que nem sempre traz juízo de valor,porém obviamente os recursos da erudição são imensos.
Em suas sinfonias , Alfred Schnittke colocou por vezes baterias no palco e na partitura. Era necessário puxar o pé do baterista quando ele devesse bater, através duma cordinha, pois ele não entendia partitura. Eu também não leio música, mas trabalhei muito meu espírito e minhas orelhas para aprender que, em geral, principalmente do romantismo em diante, o que nos agrada muito cedo, cansa, ao passo que o que digerimos após revisitas… nos revela sempre novos sabores.
Repito, ninguém precisa estudar tudo..Nem gostar de artes…Nem tampouco exaltar a preguiça,demagogia ,a criatividade pedestre ,ou a indiferença.
Flavio,
Obrigado por compartilhas suas ideias, concordo com o que você diz.
Sobre o romantismo e essa primazia que lhe é reconhecida sobre os “sentimentos”, além de ser necessário destacar devidamente uma contextura histórica e verdadeiramente filosófica na inauguração da era contemporânea, a noção de indivíduo, de gênio e de originalidade que tanto influenciaram as artes nesse período, na música são notáveis alguns aspectos técnicos, como o cromatismo, o apelo ao inefável, ao extramusical, e especialmente a separação entre forma e intenção (sobre isto eu falo rapidamente no começo deste post: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/240-anos-de-beethoven-10-momentos-bizarros-parte-i).
E sobre a questão da música absoluta/não-absoluta que você também menciona, sem querer aborrecer com auto-referências, lembro ainda deste outro post: http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/a-objetividade-e-a-subjetividade-na-musica-parte-ii.
Grande abraço,
Leonardo
Caro Leo,
Eu havia lido as outras ramificações que aqui você recomenda como auto-referências. Se eu tivesse vivenciado tempestivamente a eclosão de várias colunas em 2010, eu teria feito comentários pontuais. Como aqui cheguei extemporâneo em 2014, li tudo duma vez só e ,por vezes, “respondo”numa página com ganchos que estariam noutra, mas são associados. Do contrário, eu faria dúzias de comentários a dar-te mais trabalho na aprovação.
A questão forma e conteúdo, bem como a mús. absoluta x programática, é inesgotável….Em suma, eu sintetizei na forma, mas importa que concordamos nos conteúdos…