Chegamos num momento crucial, o “ponto da virada” do sexteto Noite Transfigurada, de Arnold Schoenberg. Até aqui a música tem sido triste, dissonante e violenta, lembrem:
– no primeiro post, o poema (e por consequência a música) nos apresentou a um casal que passeava à noite por um bosque;
– no segundo post, a mulher confessou ao homem que estava grávida de outro. Antes de o conhecer, ela se sentia muito infeliz e viu na maternidade um sentido para sua vida;
-no terceiro e último post, a mulher narrou como ela se entregou a um homem desconhecido com a finalidade de engravidar, mas agora que conheceu seu grande amor, ela sente uma terrível culpa e tem absoluta certeza de que seu relacionamento irá acabar.
Assim, finalizamos o último texto com um escuro acorde de Mi bemol menor…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN225.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 225 a 230 (Juilliard-Trampler-Ma)]… mas o acorde que vem na sequência, Ré Maior, nos transporta a outro mundo, com um panorama completamente diferente.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN231.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 231 a 235 (Juilliard-Trampler-Ma)]Die Stimme eines Mannes spricht:
A voz de um homem fala:
A quarta estrofe do poema
Das Kind, das Du empfangen hast,
Que a criança que você tenha concebido,
sei Deiner Seele keine Last,
não seja para sua alma uma preocupação,
“A voz de um homem” é aqui representada, como sempre, pelo violoncelo. E, ao contrário do que a mulher esperava, ele não a condena. Pelo contrário, ele a recebe de braços abertos com o motivo do perdão.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN236.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 236 a 239 (Juilliard-Trampler-Ma)]Imaginando que o violoncelo é a voz masculina, e o violino a voz feminina, aqui seria como um diálogo entre os dois. Mas ela está tão surpresa com a atitude dele que mal consegue formar palavras inteiras:
Vejam quantas pausas e interrupções há no violino: é a mulher balbuciando coisas sem sentido (neste caso, fragmentos do motivo feminino).
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN240.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 240 a 243 (Juilliard-Trampler-Ma)]Numa passagem ainda mais romântica, ela (o violino) consegue enfim dizer algo completo: o nome dele (o motivo masculino). Se fosse cena do Titanic, estaríamos vendo Kate Winslet dizendo Oh Jack, oh Jack…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN244.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 244 a 248 (Juilliard-Trampler-Ma)]O motivo da criança é tratado de maneira carinhosa (para “que ela não seja uma preocupação para você”), e desenvolve até os instrumentos fazerem uma pausa. É o homem interrompendo sua exposição e chamando a atenção para a noite à volta deles:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN249.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 249 a 250 (Juilliard-Trampler-Ma)]o sieh, wie klar das Weltall schimmert!
Oh veja, como o universo brilha tão luminosamente!
Para mostrar a noite brilhando de maneira tão estranha, as cordas põem a surdina e tocam delicados harmônicos. A modulação para Fá # Maior também causa um efeito deveras estranho, surreal, suspensivo.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN251.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 251 a 254 (Juilliard-Trampler-Ma)]Es ist ein Glanz um Alles her;
Há um brilho ao redor de tudo;
Du treibst mit mir auf kaltem Meer,
Você está flutuando comigo sobre um oceano frio,
Surgem aqui figuras bruxuleantes, cintilantes, representando o brilho que há ao redor de tudo. (Curiosamente, quando olhamos a partitura, o que vemos é o balanço das ondas do mar, citado no poema):
Não sei se posso chamá-lo de “motivo”, pois nos outros momentos ele reaparecerá sob outras formas e com diferentes desenhos melódicos. O que é sempre constante, porém, é o uso de figuras rápidas e repetitivas.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN255.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 255 a 258 (Juilliard-Trampler-Ma)]doch eine eigne Wärme flimmert
mas um calor interno flui
Acima do oceano frio, aparece flutuando uma nova melodia no violino, o motivo do calor. E na sequência…
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN259.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 259 a 265 (Juilliard-Trampler-Ma)]von Dir in mich, von mir in Dich.
de você para mim, de mim para você.
… o calor (a melodia) flui de você (ela, o violino) para mim (ele, o violoncelo). Aos que acharam esta passagem particularmente genial, esperem para ouvir seu complemento, 10 compassos adiante.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN266.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 266 a 269 (Juilliard-Trampler-Ma)]Com o brilho ainda fluindo no acompanhamento, os instrumentos tocam o motivo da noite no espelho (sul tasto, o oposto de sul ponticello, o que produz um som mais débil e quente). Sim, sim, é literalmente a noite se transfigurando.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVN270.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – comp. 270 a 278 (Juilliard-Trampler-Ma)]Então o fluxo de calor se inverte: de mim (ele, o violoncelo) para você (ela, a viola). O diálogo entre os instrumentos leva a um clímax, e quando este se desfaz continuamos apenas com o brilho (pois, lembrem-se, há um brilho ao redor de tudo).
Este foi apenas o primeiro de uma grande sequência de clímaxes. O restante eu deixarei para o próximo post que, já adianto, é de partir o coração. Fico por aqui, com todo o trecho analisado neste post sem pausas.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2010/08/SVNe4.mp3|titles=Schoenberg: Noite Transfigurada – compassos 229 a 278 (Quarteto Juilliard com Walter Trampler e Yo-Yo Ma)]
Esses diálogos entre violino e violoncelo são bonitos de doer.