19abr 2017
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A desumana exigência de civilidade nos concertos – Soluções?

Imponência que assusta – Franz Welser-Most conduzindo a Cleveland Orchestra no Knight Concert Hall em foto de Roger Mastroianni

Será que já existe um livro sobre a história do público de concerto? Há alguns estudos mais focalizados, como Listening in Paris: A Cultural History de James H. Johnson, After the Golden Age: Romantic Pianism and Modern Performance de Kenneth Hamilton, Highbrow/Lowbrow: The Emergence of Cultural Hierarchy in America de Lawrence Levine, The Great Transformation of Musical Taste: Concert Programming from Haydn to Brahms de William Weber ou mesmo Norbert Elias e suas obras sobre a sociedade de corte e processo civilizador. A partir desse tipo de historiografia, é possível observar como em algum momento a performance musical aderiu a uma cerimônia bastante rígida e formal nas salas de concerto comparada, por exemplo, ao tipo de audiência musical promovida durante o século XVIII ou XIX na Europa. Pois se hoje um concerto comum de uma orquestra sinfônica prevê um ritual de momentos para aplaudir, ficar em silêncio, tossir, levantar e mesmo uma ordem de entrada e saída dos músicos – tudo desempenhado com o confinamento do público às suas respectivas poltronas -, em 1780 concertos em Paris ou em Viena não eram necessariamente abertos ao público em geral, mas reuniões aristocráticas em que mesmo a montagem de uma ópera em um teatro seria apenas um dos atrativos de um ambiente em que se conversava, se visitava os amigos nos seus camarotes, se jogava xadrez, se namorava nos últimos balcões, etc. (e teatros suburbanos, se não eram fechados ou aristocráticos, não diferiam nesse aspecto). Isto já foi muito bem abordado no post “Uma nota sobre as boas maneiras em concerto” do Randau e pelo excelente artigo “Why So Serious?: How the classical concert took shape” do Alex Ross para a The New Yorker, e é frequentemente explicado como: 1) parte de um processo civilizador da história contemporânea e suas etiquetas, 2) resultado de um sincretismo social dos teatros e de um embotado decoro pequeno-burguês em busca de status ou 3) no seu extremo, como parte de um processo de sacralização, de canonização e de engajamento com a ideia do sublime na concepção da música e do ambiente propício para se apreciá-la.

Mas o exame dessa história só faz alguns problemas surgirem com ainda maior pertinência, pois podemos passar a nos perguntar: o padrão atual de um concerto de música e as suas etiquetas se concilia bem com o comportamento do público? Vejamos uns casos reais.

Aplausos

Em dezembro do ano passado Bruno Gripp relatou os aplausos efusivos durante um concerto da OSB no meio do último movimento da Nona Sinfonia de Beethoven, após a exposição do tema da Ode à Alegria, em que uma cadência deceptiva não podia sugerir que a música de fato havia terminado. O problema do comportamento do público em concertos é sempre uma oportunidade de se repensar a recepção musical desse público, como foi feito no post, mas também pode lançar consciência sobre a própria cerimônia do concerto. Por isso sempre que o público aplaude “na hora errada”, seja no meio ou especialmente entre movimentos de uma obra que ainda não acabou, o instinto de lhe imputar uma “culpa” é, por exemplo, revisto pelos otimistas: diz-se que provavelmente se trata de um público novo aos concertos, ainda não iniciado à sua etiqueta, e que a presença de gente nova é sempre bom sinal.

Partitura para o público durante a música

Mas o evento pode causar certos constrangimentos – olhares sisudos, repreensões ou simplesmente o desconforto de se sentir em uma cerimônia formal que, com esse decoro, pode intimidar a sua espontaneidade de se deixar entusiasmar demais pela música. A partir disso alguém sempre vai além e pergunta: essas coisas eram pra ser tão graves assim?! Uma demonstração de entusiasmo deveria ser reprimida ao ponto de ser capaz de criar um clima intimidador dentro das salas de concerto? As comparações com o ambiente dos teatros do século XVIII, como vimos, tão mais espontâneos e liberais (mesmo entre nobres), apenas encorajam esse embate contra a intolerância e contra o sentido de convenções que podem gerar mal estar no público. Com base nisso, alguns podem mesmo defender os culpados pelas gafes, culpando, em uma espécie de sensibilidade pelas minorias, antes a existência das próprias convenções sociais que vitimam os desavisados, o que acho que é um erro de foco.

Uma crítica mais realista pode ser feita não sobre a existência de uma etiqueta que condena os aplausos que atrapalham a percepção da música – que foi, afinal, o que levou as pessoas ao concerto -, mas sobre o excessivo clima de desconforto promovido pela etiqueta e os exageros das suas restrições. John Terauds, no post “It’s high time to reconsider applause at classical concerts” do blog Musical Toronto, convida exatamente a essa reflexão depois de relatar um concerto da Sarah Chang na cidade, em que aplausos entre os movimentos das obras apresentadas foram admoestados por gestos do regente.

Reconsiderando a etiqueta

John Terauds despojando a música clássica

Segundo ele, mesmo que cada um de nós tenha nosso próprio ideal de como o ambiente de um concerto deveria ser, o fato é que nós também temos uma necessidade fundamental de responder a estímulos – o que pode ganhar aqui certa dimensão antropológica para a discussão. Os velhos exemplos históricos do século XVIII são citados por ele para comparação, mas também exemplos de outros gêneros musicais e de outro tipo de espetáculo erudito: a ópera. A etiqueta de uma montagem de ópera pode não ser tão mais liberal do que a etiqueta de concertos no que se refere a decoro e seriedade, mas ela guardou uma condescendência para os aplausos: o público pode aplaudir entre uma ária e outra, expressando o seu entusiasmo com cada cantor, e muitas vezes pode até arriscar umas vaias.

Não permitir que o público aplauda entre os movimentos de uma sinfonia ou após a execução de uma cadenza pelo solista de um concerto, segundo Terauds, pode não só ser um excesso, como não ser coerente – diante do imperativo emocional de uma grande performance, deveria ser mais importante garantir a espontaneidade do público ao fruir a experiência de um concerto ao vivo do que garantir a exigência de silêncio absoluto. De novo, não se trata aqui de defender o direito de conversas paralelas que atrapalhariam a fruição musical do vizinho ou de uma interação tresloucada do público, que aplaudiria nos momentos mais aleatórios, mas uma crítica ao controle absoluto e à intolerância de todos os meios de manifestação do que o público está sentindo, o que teria apenas criado um clima pernóstico e incompatível com as emoções de um concerto. Porque na pior das consequências esse tipo de sisudez intimidaria o público – especialmente jovem – de frequentar concertos, o que aniquila a vivacidade que um concerto deveria ter para a vida cultural de qualquer comunidade e em muito desfavorece qualquer trabalho de educação musical para um público mais amplo.

Solução-Terauds

A resposta a esses problemas dada por Terauds, como ele enfatiza no próprio título do post, é uma simples e direta revisão dessa postura, o que mudaria o ambiente dos concertos pelo menos para algo mais próximo da espontaneidade da ópera, onde o bom senso prevaleceria sobre a mumificação imposta ao público e algum benefício social seria trazido para um encorajamento mais eficiente da música clássica a novos ouvintes.

Essa crítica é muito razoável, mas não quero ir embora hoje sem contribuir com mais uma etapa nessa discussão: apontar os defeitos da crítica e sugerir mais uma solução!

Crítica da crítica

Pesadelo das salas de concerto

Alguém discorda que nada favorece mais a contemplação da música em si do que o silêncio? Há quem diga que a formação dessa sensibilidade deve muito à cultura fonográfica do século XX, em que se pôde trazer uma gravação pra casa e ouvi-la meditativamente na poltrona da sala. Mas a partir dessa pergunta uma coisa fica evidente: a crítica contra a intolerância à manifestação de entusiasmo do público durante um concerto é obrigada a ceder alguma medida dessa primazia básica, da condição do silêncio para a contemplação da música em si, para uma outra importância que ela exige que também seja reconhecida: a da interação do público com o concerto, ou seja, a sua reação mais espontânea diante de algo que é profundamente emocional, humano, e não pacato, racional, “asséptico!” (imagem que faz até mal à música clássica).

Assim, parece que a discussão lida com dois valores: a primazia das condições para a contemplação da música e a primazia de um engajamento emocional do público como resultado simultâneo e natural dessa contemplação. A primeira primazia tem algo de individual – seria a garantia de que ninguém atrapalharia a fruição do outro -, enquanto a segunda tem, por consequência ou mesmo por objetivo, uma dimensão coletiva ao olhar para a cerimônia do concerto e reconhecer o fato de que, afinal, esse evento é composto por um conjunto de pessoas que, querendo ou não, já estão interagindo entre si e com os músicos ao estarem ali, o que não tem como ser confundido com as condições de um indivíduo isolado diante de um telão.

É claro que pensar nessa segunda primazia pode propor vantagens mesmo para a primeira: conceder que um concerto é um evento coletivo e que pessoas reunidas trazem “calor humano” pode ajudar a própria contemplação da música, criando um entusiasmo coletivo que envolva o público e os próprios músicos (gravações ao vivo atestam isso muito bem). Mas em algum ponto essas duas importâncias terão um conflito, porque o contemplar e o querer manifestar reação à contemplação, quando simultâneos, serão excludentes: aplausos antes do fim da música ocuparão o exato espaço que ainda poderia ser o da sua contemplação. Sem ficar patinando apenas nessas considerações teóricas, creio que a partir daqui a prática é que deve nos responder: afinal, o que a música tem a dizer sobre isso?

Aplausos entre movimentos

Pensemos nos aplausos entre os movimentos. Terauds diz que o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven foi tão esfuziante naquele concerto que o público o aplaudiu (ao que o regente sinalizou pra que os aplausos fossem contidos). Se o espaço para este tipo de manifestação de entusiasmo entre movimentos for defendido, deveríamos levar em conta pelo menos dois dados históricos e um dado musical.

Dados históricos

O primeiro dado histórico é que se você defende que aplausos tenham espaço entre os movimentos de toda obra musical, amparado seja pela espontaneidade incontível do público, seja pelo exemplo do ambiente nos teatros do século XVIII, você pode estar sendo no mínimo anacrônico com compositores que, não mais escrevendo para um público do século XVIII, escreveram para um público mais silencioso já durante o século XIX ou XX e, justamente por isso, exploraram esse ambiente silencioso oportunamente com a sua música.

Encontro de connoisseurs – Beethoven e o Quarteto Rasoumowski

O segundo dado histórico é que mesmo a generalização do padrão de concertos do século XVIII é perigosa: o cenário de entretenimento barulhento diz respeito aos teatros de óperas e de orquestras de câmara que acompanhavam eventos sociais. Mas a música de câmara mais especializada teve, por vezes, outro ambiente, o de connoisseurs reunidos para apreciá-la em salas mais privadas, como no caso dos quartetos de Haydn (e certamente Mozart e Beethoven). A música para teclado demorou para ganhar a evidência dos grandes concertos: era antes escrita com uma forte raíz didática, voltada para um mercado editorial que visava pianistas e estudantes. E a música sacra, enquanto foi vivamente cultivada dentro de uma liturgia, tinha obviamente uma audiência mais reverente do que o teatro de ópera aristocrático. Todo esse repertório terminou sendo incorporado pelo espaço do nosso concerto, mas, como podemos ver, a generalização de um cenário musical específico do século XVIII como exemplo a ser aplicado às mais diversas obras dos nossos concertos pode ser inadequada.

Dado musical

E o dado musical é que pode haver mais conteúdo entre dois movimentos do que sonha a sua filosofia: diferente da música barroca, em que um conjunto de danças em uma partita, por exemplo, poderia trazer sempre danças na mesma tonalidade principal da obra, a música do classicismo passou a explorar o sistema tonal com uma trajetória que se permitia mudar de tonalidade em cada movimento até retornar para a tonalidade inicial da obra, fechando um ciclo coerente. Isso foi facilitado pela história da afinação dos instrumentos, quando tipos de afinação temperada já permitiam que um instrumento não precisasse ser reafinado sempre que mudasse de tonalidade, até chegarmos no temperamento-igual moderno. Mas o ponto é que há um critério na mudança de tonalidade dos movimentos, e, conforme eles foram sendo explorados com cada vez mais ousadia – quando Beethoven começou a tornar essa trajetória de tonalidades cada vez mais enviesada em algumas obras -, a expressividade dessa relação tonal entre eles e a sensibilidade do ouvinte foram sendo testadas. O critério padrão da relação de tonalidades de uma obra clássica multimovimental é o círculo das quintas, mas ao invés de entrar nessa intrincada questão teórica, quero apenas dar um exemplo significativo.

Na Sonata para Piano No. 29 em Si bemol maior Op. 106 “Hammerklavier” de Beethoven, nós temos um primeiro movimento em si bemol maior, um segundo também em si bemol maior, mas um terceiro – o seu longo adágio – em fá sustenido menor, que é uma tonalidade muito distante da tônica si bemol maior da obra (sendo enarmônica de sol bemol menor, seria a \flatvi (submediante bemol menor) da tônica). Sair da sensação de repouso da tônica de si bemol maior instaurado pela obra nos seus dois primeiros movimentos e entrar em fá sustenido menor é certamente um acontecimento musical legítimo em si mesmo. Ouça o que é sair de repente de si bemol maior para fá sustenido menor:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/B-flat-major-F-sharp-minor.mp3|titles=B flat major – F sharp minor]

Mas tanto essa transição entre os dois movimentos é significativa musicalmente que Beethoven, manipulando o choque dessa transição, não inicia o terceiro movimento direto com um acorde de fá sustenido menor, mas com uma ambiguidade tonal: em duas notas (que ele acrescentou depois da obra estar pronta), a música inicia como se estivesse na tonalidade de lá maior, preparando a entrada no campo do acorde em fá sustenido menor. A transição entre o segundo e o terceiro movimento fica assim:

[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2012/02/Beethoven-Piano-Sonata-No.-29-in-B-flat-major-Op.-106-Transition-between-movs.-II-and-III-M.-Pollini-1977.mp3|titles=Beethoven – Piano Sonata No. 29 in B flat major Op. 106 – Transition between movs. II and III (M. Pollini – 1977)]

É a entrada em um mundo completamente diferente, com a mudança de tonalidade auxiliando isso diretamente, e o que ele vai ter que fazer pra voltar a si bemol maior no quarto movimento é outra história fascinante. Mas com isso o exemplo chega a ser grosseiro de que, é óbvio, aplausos neste ponto não só ocupariam o espaço de um momento que pode ser contemplado musicalmente, como principalmente dissolviriam a sensação tonal do seu ouvido construída pela obra até aqui – e esse é um ponto que a etiqueta, de alguma forma (às vezes entre umas tosses), ao menos se dispõe a preservar. A musicóloga Susan McClary, legitimando indiretamente a questão, afirma que o efeito de uma modulação para a submediante bemol pode representar um “estado onírico de fuga”.

É certo que nem sempre a relação tonal entre os movimentos de uma obra terá uma atitude notável, mas ainda vejo valor na preservação da sensação que a tônica impõe aos nossos ouvidos como o “repouso” da música e tudo o que acontece sobre ele durante a obra. E é claro que até mesmo para conferir que não há uma atitude inusitada na sensação tonal entre os movimentos de uma obra você terá que ouvi-la! A escolha dessas tonalidades também pode ter motivos mais meramente técnicos: elas podem ser escolhidas para favorecer o registro de um instrumento que será mais explorado em determinado movimento. Mas essa escolha já costuma ser preparada desde o começo da obra (então se um movimento tem uma tonalidade muito distante, é porque isso se justifica no seu efeito tonal mesmo).

Fora a questão tonal, é preciso dizer que fragmentar uma obra entre aplausos tende a não ser uma boa ideia em qualquer sentido – o que seria a experiência de uma sinfonia de Mahler toda fragmentada em aplausos? Um idealista poderia dizer que os aplausos entre movimentos poderiam ficar por conta do bom senso do público e não em casos tão inapropriados, mas, como eu disse, eu não acredito que esse momento exista e não vejo a possibilidade do bom senso ser instituído: quando o assunto é comportamento social a tendência são os padrões. Já obras com outras estruturas mais ininterruptas pelo menos não sofrem tanto esses riscos.

Preço da interação

A ideia de interação do público com aplausos entre movimentos ou em cadenzas de solista acompanha a noção de se querer interagir especificamente com o momento que causou entusiasmo ao invés de guardar a sua manifestação para o final da obra (daí essa lógica funcionar à parte na ópera, que traz números que podem ser bem mais independentes (lembremo-nos do significado de “ópera”: “obras”)). Mas acho que, como foi mostrado, há motivos de se aproveitar melhor o recheio da experiência musical, ou ao menos guardar esse direito aos outros. Também creio que os motivos espontâneos pra se aplaudir, mais do que por entusiasmo, também podem ser menos nobres…, como um espírito tanto de pura afobação em celebrar os músicos sem nem mesmo ter contemplado a música quanto por esnobismo em interagir com o espetáculo – nesse sentido, a etiqueta dos aplausos ao menos tenta concentrar todos esses motivos, nobres ou não, para o final.

Atacando o inimigo errado

Creio que o ataque à etiqueta dos concertos seja o exercício de uma crítica insatisfeita especialmente com a imagem sisuda e afrescalhada da música clássica. Adriano Brandão, com quem conversei sobre este assunto e que divulgou o post do John Terauds, mostra esta imagem como a afetação indesejável ligada à música clássica pela qual o ambiente dos concertos pode ser um pouco responsável. Creio que essa seja uma consequência cultural mais ampla do que o formato do concerto, e atacar ou mesmo eliminar o que esse formato tem de razoável na tentativa de ajudar essa imagem da música pode ser muito radical. Mas o que poderia ser feito então?

Solução

Minha primeira resposta é: desatemos um pouco, pelo menos um pouco, os nós doutrinadores de sonhar em determinar como as pessoas entendem a música clássica no mundo inteiro. O que acontece nas salas de concerto pode nos dizer respeito quando afeta o cultivo do que gostamos ou a nossa própria experiência em um espetáculo, mas o sentimento de sermos membros de um clube superior irmanados pela música clássica, aptos a decidir sobre os rumos da instituição moderna do concerto, pode inspirar certas frustrações totalitárias – ironicamente, isso vale tanto aos defensores ferrenhos do concerto padrão quanto aos seus acusadores utópicos.

Mais pluralidade nos concertos (Richard Fox – Concert)

E a segunda é: ok, seria bom se houvesse o que fazer para que concertos fossem uma experiência mais ampla no seu potencial. No meu mundo ideal o concerto silencioso não precisaria ser eliminado em nome das críticas que são feitas a ele – e eu nem acho que essa etiqueta, apesar de ordenadinha, seja tão austera assim, convenhamos (mesmo uma sala de cinema pode não ser tão menos intolerante com barulhos). Mas acho que um dado histórico que poderia nos inspirar, ao invés do barulho puro e simples dos teatros aristocráticos, é a pluralidade de formatos de um concerto.

O concerto padrão atual é mesmo profundamente especializado no seu formato e pressuposto de todos os concertos do mundo, mas se olharmos para o passado veremos concertos em que Liszt oferecia uma urna pra que o público colocasse bilhetes com pedidos de música (o que dizem que era divertido, porque muitas vezes surgiam mais piadas do que pedidos de música), concertos de madrugada (!) feitos por Berlioz ou os desafios e duelos entre instrumentistas virtuoses. Temos alternativas ao concerto padrão, como concertos a céu aberto – que apenas são geralmente pouco interessantes e bregas, mas bem mais relaxados -, concertos didáticos – o público fica à vontade com o diálogo e satisfeito em sentir que aprendeu -, concertos abertos a pedidos – Gabriela Montero, ao final dos seus concertos, tem pedido ao público por temas pra improvisar -, e creio que uma riqueza de formatos para experiências com a música clássica é o que poderia abrigar tanto esse desejo de espaço para a manifestação do entusiasmo do público, quanto o espaço para uma contemplação mais solene, entre outras ideias e interesses.

O incentivo a essa pluralidade de eventos e experiências musicais, portanto, é o que eu vejo ser possível vislumbrar nessa esfera de formatos de concerto para atingir a cultura musical – iniciativas bastante criativas já têm sido empreendidas, o que é animador.

Alguém pode finalmente imaginar que nem toda cultura (a brasileira, por exemplo) abrigaria a dimensão dessa pluralidade: o investimento em propostas de concertos alternativos poderia simplesmente ficar sem público. Mas não é assim que se descartam boas ideias e acho que não seria algo tão difícil assim: grandes orquestras fazerem concertos didáticos?, músicos fazerem recitais abertos a pedidos?, com uma boa divulgação? A própria música popular, cuja relação com a cultura geral pode ser tão idealmente espontânea, já mostra que isso pode ser bastante natural há um bom tempo, então que a música clássica resgate a sua pluralidade também.


Este post tem 35 comentários.

35 respostas para “A desumana exigência de civilidade nos concertos – Soluções?”

  1. Eu, como compositor, ver-me-ia sem dúvida arreliado com o facto de em cada movimento de uma sinfonia, por exemplo, haver aplausos. A sinfonia tem só um nome e é uma obra una. Ou melhor, pelo menos ela ganhou esse carácter de unidade mais coeso ao longo dos tempos. E se o excesso de etiqueta afasta pessoas dos auditórios, não pode haver no mundo erudito uma mudança porque o seu efeito não é agradar, mas elevar. Para agradar, existe a música popular em que as pessoas de pé e a gritarem «ouvem» «música». Entusiamo de um público é animal, é baixar ao nível do gosto do prazer, algo que a música erudita não deve contemplar. Porque o ser humano tem que fugir ao seu carácter animal e comportar-se como um ser humano civilizado. Algo «profundamente emocional» é a impulsividade que tantos desastres trazem na vida de qualquer pessoa. Pessoas impulsivas são pessoas ignorantes que não contribuem para uma significativa melhoria do mundo. Tentar buscar a racionalidade com a busca de prazer amenizada, e não em excesso como tem acontecido nesta sociedade, é a busca da felicidade. A busca da felicidade é o âmbito maior, humanismo grandioso, o que a música erudita quer transmitir. Parem de criticar a etiqueta que ela está bem como está. Evita situações estúpidas e desumanas.

  2. Gostei muitíssimo do post, Leonardo! Concordo contigo que a solução seja de fato a pluralidade da programação dos concertos. As apresentações de Lizst, por exemplo, acabavam por criar uma interação maior com o público, e acho que é isso que realmente falta hoje em dia. Acredito que a interação deva ter seus “limites” também: a OSMG, por exemplo, em apresentação na cidade de Viçosa no passado, fez um excelente trabalho, mas na última peça o regente pecou ao pedir que os espectadores batessem palmas ao ritmo da Cavalaria Andante; não sei até que ponto tal atitude seria “ruim”, mas, pelo menos para mim, não foi muito animador escutar mais intensamente o som emitido pelo público do que pela própria orquestra.

  3. Anónimo,

    Só espero – Deus o livre – que você tenha lido o post até o final e que “Parem de criticar a etiqueta que ela está bem como está” não se dirija a mim, que terminei fazendo justamente o contrário! :)

    Cla,

    Muito bom ter esses exemplos reais e o seu testemunho de um momento de concerto pra galerë. O post “Engano” do Bruno também teve uma boa discussão e, no final, alguns comentários sobre as curtas reuniões oferecidas pela OSESP antes dos seus concertos explicando as obras que vão ser apresentadas.

  4. Belo texto, Leo. Então, acho que o ponto principal não é, claro, os aplausos, mas outro: o meio musical – do qual não faço parte – deveria se preocupar em evitar que esse tipo de música torne-se completamente divorciado da sociedade.

    A imagem dos “habitantes das catacumbas” que o Osvaldo Colarusso criou para representar os interessados na música do século 20 – que tão bem cabe aos ouvintes da música de todos os séculos – é mesmo consoladora. Eu mesmo criei, no Twitter, uma versão tongue-in-cheek da catacumba, que é a Ilha Quadrada. Mas acho que deixarmos todos – ouvintes e músicos – essa vida de proscritos deveria ser uma possibilidade a ser avaliada.

    Comecemos pelo começo: deveria-se dizer, com todas as letras, que música clássica é absurdamente legal, que é algo vivo, inspirador, inteligente e, sim, coisa de gente bacana e perfeitamente normal.

    Praticamente toda ação de divulgação musical que eu conheço é BORING AS HELL. (Faço mea culpa: meus textos no Allegro eram um porre também.) Em geral todas as iniciativas transmitem a seguinte mensagem: música clássica é museu, é esoterismo comentado em um lingo incompreensível por gente velha e sem humor.

    Pegue um vídeo do Leonard Bernstein explicando para a “juventude” a “Eroica” ou a “Sinfonia fantástica”, e durma profundamente. As duas sinfonias são das coisas mais eletrizantes já criadas pelo ser humano, mas o Lenny, de black-tie e tom professoral, as comenta de modo ensaiado e empostado, como se proferisse um discurso de formatura. (E ainda por cima ele atucana a psicodelia da “Sinfonia fantástica”, dizendo que a viagem de Berlioz era sua imaginação fértil. OK, os EUA pós-Eisenhower não era exatamente um ambiente seguro para o Lenny, então todo cuidado era pouco.)

    Como se conquista novos ouvintes, nascidos no final do século 20 (ou mesmo no século 21), desse jeito aborrecido?

    O ponto é: nossa música não merece o tratamento ultra-establishment que ela recebe. A imagem dos músicos de fraque, silenciosamente admirados por ouvintes bem-vestidos em um ambiente artificial, transmite o oposto da mensagem libertária, inconformista e antiaristocrática de obras como “Eroica”.

    Ao contrário do que alguns pensam, não creio que seja necessário modificar a música para o nosso tempo. A música já é perfeitamente adequada do que jeito que está! É preciso somente “embalá-la” melhor.

    Música clássica é um tigre de 300 quilos, vendido como se fosse um poodle tosado de laços cor-de-rosa!

    Pra mim o primeiro passo é permitir que as pessoas sejam naturais, confortáveis, felizes ao ouvirem a música que amam. Se são na vida, que sejam na música. Porque deveria ser diferente?

  5. Adriano,

    É triste ver esse assunto tão mais amplo reduzido a etiqueta – e o seu comentário tem a ver com coisas bem maiores do que o formato do concerto ou a ordem dos aplausos -, mas a pergunta “como evitar que a música se divorcie da sociedade?” e a sua última frase podem retornar pra questão do formato do concerto e a maneira como as pessoas vão se comportar nele: “que as pessoas sejam naturais, confortáveis, felizes ao ouvirem a música que amam. Se são na vida, que sejam na música. Porque deveria ser diferente?”. Porque se de um lado isso diz respeito a como as pessoas concebem música clássica ao ouvi-la, o que é um tema imenso cujos determinantes são complexos de rastrear (qual é o mapa de coisas responsáveis por reprimir a naturalidade das pessoas?, e o mapa de coisas que constroem a imagem artificial?), de outro isso fatalmente vai encontrar a decisão mais específica de como as pessoas podem assistir a um concerto da maneira mais “natural, confortável e feliz” possível. O problema é que quando essa crítica a todas as barreiras à naturalidade da música clássica é feita a partir do formato do concerto e a sua etiqueta (como foi feito pelo post do Terauds), pode-se perder de vista que um concerto com músicos bem vestidos e uma expectativa de silêncio durante as obras é muito pouco pra ser responsabilizado por um mega-contexto cultural que define a imagem das pessoas sobre a música clássica. Se um concerto não pode ser assim – o que parece bem inócuo – que já vai estar confirmando preconceitos tão duros, então fica bem claro que essa situação delicada já vem de fora dos concertos – mudar o traje dos músicos ou não moldar mais o concerto na atenção que um ouvinte queira dedicar à música pode mudar essa situação? Talvez isso apenas daria liberdade ao que já estava fora do concerto: incompreensão ou afetação – que continuaria acontecendo -, mas não construiria nada. A partir daqui, como eu disse no final do post, fica claro que pensar no formato do concerto até pode ajudar a influenciar essa cultura da música clássica, especialmente com propostas criativas. Mas aí já tem mais a ver com novas ideias do que com uma culpa do próprio formato do concerto.

  6. Caro L. Oliveira,

    Obviamente que li. E não estou a dirigir-me a si, mas sim à gente que tem vindo a criticar vários assuntos como este abordado, o elitismo da música (que é falso e que recomendo fazer um post sobre isso), entre outros. O modo como disse a frase foi mais um grito de revolta contra gente que parece que não pensa nem reflecte.

  7. Anónimo,

    Certo. Não sou tão pessimista em relação ao que eu chamo de “entusiasmo” e vejo a sua relação com a música tão inevitável quanto com o ser humano, ao invés de como uma ameaça a esse beletrismo idealista, mas enfim, sobre elitismo na música clássica – no sentido dela ser acusada de segregar o público por alguma pré-condição muito mesquinha -, talvez o outro post a falar sobre “desumana exigência” aqui no blog (mas beeem mais curto do que este) tenha dito algo a respeito: http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/musica-classica-a-desumana-exigencia-da-forma. É o quarto e último post de uma série sobre o conceito de música clássica.

  8. Muito bom o post Leonardo. Já havia sido discutido no post anterior a este assunto sobre as iniciativas da OSESP e dentre outras, sobre uma pré-eduação musical. Gostei do modo como você abordou o assunto, pegando exemplos de iniciativas dos próprios compositores. Faço aqui um adendo sobre um compositor também que contribui bastante para isso, Richard Wagner. Wagner antes (mas bem antes mesmo) de reger/apresentar uma obra ao público, divulgava o libreto de tal Obra e com detalhes relacionados à música-em-si. Ele lutou com muita veemência para afastar aquela visão de Teatro de Ópera que vinha perdurando desde os séculos passados, e isto fica claro quando vemos sua concepção de Teatro, algumas exigências quanto à iluminação dos espetáculos. E uma de suas maiores preocupações era como ele iria lidar com o público que estava em ascensão, ou seja, a burguesia; Como ele iria exigir que esse novo público tomasse consciência da grandiosidade de sua arte, sem cometer excessos com relação à execução e fruição das suas obras. Eu não diria que sou conservador, mas uma suposta medida de relativização do comportamento do público, é deveras nocivo para mim, em suma, continuo apoiando o silêncio, e não acho viáveis aplausos durante os movimentos.

    E o público deve conter suas supostas emoções-emoções essas, diga-se de passagem, na maioria dos casos são condicionadas não pelo próprio indivíduo, mas por motivos exteriores a si, como por exemplo, um estímulo efusivo do companheiro (a), ou como estímulos provenientes de si como o pedantismo-, pois pode ao invés de demonstrar seu contentamento com o que acabou de ouvir, pode na verdade demonstrar ser suscetível de mais a momentos, embotando qualquer atividade intelectiva mais profunda sobre a música.

  9. Diego,

    O exemplo de Wagner é oportuníssimo.

    Acho que o século XX viu a desnaturalização da alta cultura, e hoje coisas simples como ver gente bem vestida em uma cerimônia musical e ouvir a música em silêncio começam a ser acusadas de ultrapassadas, porque a música clássica ficou com uma imagem ultrapassada. Acho a princípio que é preciso conter o ímpeto de modernizar a música clássica considerando “ultrapassadas” coisas normais, pra que não se jogue o jogo ignorante dos preconceitos apenas pra tentar livrar a música clássica deles – o problema dos preconceitos geralmente é mais profundo do que apenas as aparências. Mas no fim o incentivo a diferentes formas de concerto, sem derrocadas nem polêmicas, seria benéfico em todos os sentidos – quem dera…

    E vocês viram o vídeo da Gabriela Montero? É GENIAL.

  10. O processo civilizador discutido por Elias está baseado na importância da etiqueta. Quando o homem passou a usar garfo e faca, o mundo sofreu uma das mais importante revoluções de sua história, sentidas até hoje. Outro importante livro é “The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined” de Steven Pinker que corrobora a grande obra de Elias com números, neste caso observando como a violência caiu dramaticamente após a chamada época da razão. E nessas estatísticas, já estão incluídas as grandes guerras do século XX. A cabeça do homem mudou muito, apesar dos traços selvagens e primitivos que estão sempre presentes na mídia. Os exemplos são inúmeros, principalmente considerando a extinção quase total da escravidão, direitos da mulheres e por aí vai. Pensar duas vezes antes de atacar o franguinho na mesa com as próprias mãos, segundo Elias, mudou substancialmente a impulsividade humana para outras coisas. No caso da música vejo a mesma coisa. Antes do século XX, a música era tratada com total desrespeito. O público era grosseiro e ignorante, tanto na aristocracia como na burguesia (ler Proust). No entanto, o público daquela época era mais interessado nas novidades musicais que o público de hoje, que é passivo e estúpido. O silêncio também significa sinal de ignorância. Talvez uma porcentagem significativa desse público (10%, um chute) sabe quando os músicos são incompetentes, quando as trompas soam desafinadas…Mas a etiqueta de hoje, onde os músicos entram com suas roupas sem importância e do público calado, é um sinal tranquilizador de que ainda usamos garfo e faca. Enquanto isso o “tigre” passeia nas nossas cabeças e corações.

  11. Eu penso que,se o povo vê a musica erudita como ultrapassada,por sua etiqueta já não mais observada na vida cotidiana,esta não deve se adaptar aos ridículos modismos de comportamento atuais,com medo de perder o que conquistou,mas ao em vez disso,trabalhar em prol da educação,atraves dos métodos já muito explorados nesse sentido.

  12. Jean,

    O que seria uma etiqueta ainda observada na vida cotidiana? Etiqueta pode ser algo justamente restrito e especializado à sua própria ocasião. Mas concordo que passar a incluir coisas simples e razoáveis (como o mero fato de se assistir a músicos bem vestidos e ouvir música em silêncio em um concerto) em um “projeto de revitalização” da imagem da música clássica pode ser uma concessão muito tola a meros preconceitos, cujos problemas sejam bem mais profundos do que um mero ajuste de aparências. Creio, como disse, que a tradição da alta cultura tem se tornado cada vez mais especializada e menos geral, e a partir daí surgem vários dilemas: trazer a música clássica para o contexto da cultura de massa moderna (em que eu acho que ela é tão violentamente achatada que não sobrevive na competição com outras músicas feitas para este ambiente) ou se contentar em oferecê-la dignamente ao público interessado (o que pode ser responsável por afastá-la ainda mais do público mais geral e comprometer a sua presença na cultura)? Eu tendo a partir da segunda hipótese como princípio, e se alguém acha a cerimônia de um concerto chata ou uma conversa de inversão de temas pedante, qual é o sentido de eu correr atrás de cada um pra convencê-los do contrário? Mas se alguém quer fazer algo pela ampliação da música clássica na cultura, acredito que – além da dependência de educação, como você disse – esse incentivo a formas diversificadas de experiências com ela (propostas criativas de concertos) possa fazê-la ir de encontro à atenção e interesse de mais e mais pessoas. É o que eu vejo de mais honesto.

  13. creio que em primeiro lugar se deve ter respeito pelo sitio de pertencimento do outro, isso não é preciso nem discutir, também vejo que o tradicionalismo atrapalha muitos diálogos, agora isso tudo ai vai depender de músico para músico, alguns vão ser mais abertos a mudanças, vão ousar mais, sempre procurando manter o bom senso e respeito. acho que as coisas são simples assim, a gente complica demais as vezes, elitiza demais, impões regras demais, não que elas não sejam importantes, mas me responde a sua visão sobre isso Leonardo (ou me mostra algum link onde isso já foi abordado), vivemos em um país que se construiu através das misturas, a música que veio com a corte portuguesa era da elite e os escravos eram reprovados em seus batuques e Lundus, o tempo passou nossa música se formatou, porém aquela música da corte, continuou a mesma, não se misturou, e hoje, somente hoje velo ela se atraver nesse meio, misturando, se permitindo participar de outros estilos e deixando a troca fluir (veja os violinistas de chorinho, bateria da mangueira na sala de concerto ou o mais recente: o violinista na escola de samba), será que esse sincretismo não foi apenas adiado? o repudio contra aplausos ou qualquer coisa fora de um protocólo não é apenas um gemer rancoroso do mais tradicionalista que não aceita essa possível mistura? não defendo modificar as coisas, mas defendo que se permita sem regras a ousar mais.

  14. Olá, Daniel.

    Acho que só uma perspectiva unidimensional não vê resultados plurais da miscigenação cultural no Brasil: se de um lado escravos eram enclausurados dentro das suas próprias unidades de produção especialmente no período colonial, de outro havia as festas e cortejos de coroação do “rei do Congo”, muito musicais, no mesmo período. De um jeito ou de outro, espaços da música negra no Brasil acabaram improvisados e por fim estabelecidos, desde os chamados vissungos nos garimpos, as atividades da umbanda em festas de senzalas até a cultura dos quilombos – o que veio a constituir a música afro-brasileira até hoje, o samba, o maracatu, a capoeira, o candomblé, toda a música religiosa iorubana, etc. Enquanto que, se de um lado a música de corte trouxe a valsa, a mazurca, a polca, a gavota e a contradança com que o europeu se identificava, de outro o maxixe, o chachado ou o chorinho nasceram justamente da sincretização a partir das danças europeias. É curioso que projetemos uma identidade a essas formas musicais e nunca identifiquemos essas formas híbridas como a música europeia cedendo à música brasileira, mas sempre o contrário. Certamente porque a presença da música europeia no Brasil é vista como uma importação, e a partir daí todo o resultado da sua presença é levado a cabo *dentro* do país, tornando-se obviamente “música brasileira”.

    Mas também vejo que a dinâmica da influência da música popular sobre a música clássica funciona de maneira distinta do que o contrário. Os dois gêneros são presididos por técnicas que podem ser profundamente diferentes – um reproduzindo a linguagem que traz a sua própria identidade, o outro manipulando um conjunto de linguagens. Por isso a influência da música popular sobre a clássica mostra-se mais vezes como uma “incorporação” da popular pela clássica, exatamente como podemos ver com compositores brasileiros como Nepomuceno, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Guerra-Peixe, Bento Mossurunga, Brasílio Itiberê, Radamés Gnatalli, Ernani Braga, etc., etc., etc. Ou mesmo compositores estrangeiros como Darius Milhaud e mais alguém de quem eu não esteja me lembrando (Gottschalk tem a virtuosística fantasia sobre o hino nacional brasileiro).

    Então acho que não se trata, no caso da cerimônia do concerto, de um elitismo ou de uma profunda resistência à mistura, como se essa história fosse unilateral e não tivesse frutos independentes (ou seja, tanto conservadores como sincréticos). Os dois pontos são que: 1. como eu mostrei, há um bom motivo pra ouvir a música antes de aplaudir, que é, se formos pensar, como se faz no cinema – por que as pessoas se permitem achar ruim quando se conversa alto ou se algum maluco começar a aplaudir no meio de um filme?! Por que só no concerto isso é “elitismo”? 2. Ficar em silêncio enquanto uma música toca não tem absolutamente nada demais, é exagero nosso procurar abrigar todos os estigmas culturais da alta cultura em um hábito tão simples e banal. De onde, na minha opinião, uma multiplicidade de propostas de experiências com a música clássica é mais oportuna do que uma crítica muito insurgente (e até totalitária) ao formato padrão do concerto.

    Outro exemplo da função do silêncio na música que eu esqueci de mencionar no post é o da Nona Sinfonia de Mahler, que Claudio Abbado, APÓS terminar, sempre passa um bom minuto em absoluto silêncio, porque, claro, ele sabe muito bem que todas as tensões dessa sinfonia de uma hora se dissolvem no final até alcançarem o silêncio, e que isso empresta algo de uma experiência mística (não por frescura nossa, mas por exigência da obra). Vejam o ponto exato neste vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=tbxpX5aImLw&t=77m14s (cliquem que já vai estar no ponto certo). Agora imaginem o público aplaudindo apressado nesse momento…

  15. 1 assim como o toque do celular que é algo horrivel em qualquer situação e que as pessoas insistem em deixar ligado.
    2 sim concordo contigo, sempre é melhor ouvir quieto, afinal assim você ouve mais, mas tomei como base uma carta de Mozart que vi citada em um livro “O Discurso dos sons” onde se mostra que o compositor previa aplausos e vibrações (como um belo show de rock) no meio da música! faz tempo que li esse livro mas me lembro bem da carta e da interpetração do autor, você deve saber que carta é essa que estou falando.

    sobre a experiência mistica já vi algo do tipo no festival dos canarinhos de Petrópolis, era um Cellista, não me recordo de cabeça agora qual era a peça que ele tocou, tenho mp3 dela mas estou escrevendo agora sem consultar nada, pois bem, ele tocou com tanto sentimento e furia (!) que no final ele parou, tirou o arco do Cello e levantou a cabeça lentamente, a platéia estava em silêncio, extasiada com o que ele havia feito, quando finalmente ele levantou a cabeça e olhou para o público foi aquela explosão! foi realmente mágico e todo climax teria sido destruido se houvesse palmas antes da hora.
    Mas então com base nessas coisas e nas minhas primeiras idas a concertos (no qual não sabia o que fazer, se estava na hora certa de bater palmas, isso assusta), acabo vendo que parte é educação do ouvinte (talvez até mais da metade da parte) e a outra é o envolvimento ou recurso que o músico tem em permitir ou não tais interferências, não quero dizer que a culpa e do artista por não ter emocionado as pessoas, também não adianta tocar para uma pessoa que não está afim de estar ali te ouvindo, ou não captou a sensibilidade, já que falamos em soluções, uma forma ótima que a violinista Anne-Sophie Mutter ao tocar Bartok’s Romanian Dances em Amsterdam, 2005 (tinha gente dormindo e era um concerto a céu aberto, talvez ouvesse muita gente ali que não conhecia procedimentos de como se portar em um concerto?) ela simplismente não deu tempo de ninguém aplaudir entre os movimentos, ela tocou tudo sem parar dando uma pequena pausa de um segundo ou menos entre os movimentos, achei essa forma de conduzir o concerto ótima, ela manteve a formatação e acho que assim fez as pessoas entenderem melhor quando se deve aplaudir, ou seja no fim! mas ela não explicou, brigou ou fez caretas pra isso, ela simplismente tocou. Concordo contigo sobre só achar que a música de orquestra (clássica) é invasora e elitista, o que hoje pelo menos vejo que não é verdade, ela já faz parte do Brasil, e vejo muito em movimentos como o Armorial (que é outra história não viria bem ao caso), ou os compositores brasileiros, não suporto preconceitos do “popular” nem do “clássico”, se torna uma guerra inútil e sem fim, talvez essa guerra até seja mais travada entre ouvintes mais do que músicos. Não sou Nacionalista o bastante a ponto de querer excluir toda e qualquer influência de fora, afinal como dizia Nelson Sargento: “Música boa é aquela que a gente gosta”, não importa qual seja.
    Sou a favor do que já foi dito por outros ai, propor concertos diferentes, com o fim ou não de mostrar como são os costumes da música Clássica, ou simplismente se deixar permitir a coisas novas.
    queria escrever pouco e escrevi muito…

    sobre o Blog, eu não conhecia e confesso que quando o achei tive um susto, convive com músicos de orquestra por uns 10 anos ou mais, e ainda convivo, toquei em banda de rock e hoje sou mais voltado ao regionalismo, sou bem eclético embora toque viola, um instrumento de orquestra, fiquei assustado pois digamos que “enjoei” dos músicos de orquestra, conheço tantos que tem uma visão tão fechada infelizmente, atualmente estudo História e pretendo no futuro fazer Etnomusicologia, gostei do seu texto da sua visão é bem livre desses preconceitos que só atrapalham, e é bom achar pessoas assim em que possamos conversar de música, pessoas que não tenham uma postura do tipo: sou especialista em música clássica o resto é lixo, bem acredite já ouvi coisas do tipo, não sou a favor de julgar as pessoas e apenas chama-las de ignorantes, mas sou a favor de dialogar e mostrar seu ponto de vista, todos somos ignorantes em algo. fico feliz pela resposta e agradeço a atenção.

  16. Leonardo, estava fazendo uma leitura e achei um trecho de um livro que estou lendo, e nossa veja como isso parece até soar bem atual e diz muito do que estamos falando aqui, ele fala especificamente sobre a vida no Rio de janeiro nesse Brasil Colônia, e pelo que vejo esse processo ainda vem se fazendo até nos dias de hoje:

    “Os simbolos, nesse contexto específico, formavam um sistema de códigos interpretáveis, onde para tudo aquilo que era imagético, auditivo e visual havia uma relação. A fala, o som, as roupas e os comportamentos – pensa-se evidente em gestos, posturas, movimentos do corpo – tinham suas verdades próprias, isto é, eram significantes criados para uma verdade própria, talvez única. Entre as informações que eles continham e as leituras a que estavam sujeitos, os significados podiam ser outro, remodelados, adaptados e compreendidos num mundo diferente. Afinal, os homens criam e interpretam alguma coisa num determinado lugar; e é exatamente nele, no ambiente onde ocorrem os eventos culturais, que se estabelece a relação entre significantes e significados
    O que aconteceu, na verdade, foi que as práticas musicais tiveram tanto de atenuante, em relação às diferenças sociais, quanto de agravante. As práticas tiveram de amalgamar-se às tradições. Em outras palavras, o espaço definia-se, paradoxalmente, entre a tolerância e a articulação. Se pensarmos no sentido do antecruzamento das culturas e nas formas de manifestação permitidas, a situação colonial foi exatamente um palco para a circularidade de gostos e costumes. Era uma corte nos limites da sociedade escravista. (p.181)

    MONTEIRO, Mauricio. A construção do Gosto , Música e Sociedade na corte do Rio de janeiro 1808 – 1821, Ateliê editora.

    embora seja sobre esse período de 1808 a 1821, parece que alguma coisa ainda soa atual, parece que alguns processo ainda se fazem hoje.
    é bom estabelecer que falamos de costumes em especifico não de alguém desprovido de educação que fala, ronca ou atende celular em uma apresentação, acho que se faz importante entender qual é a importância de se manter um padrão e se realmente não é de ignorância maior a repreensão a uma pessoa por bater palmas antes da hora, continuo concordando com o exemplo e como confirmei, que palmas no lugar errado podem acabar com toda “magia”, mas acho que também não seja o fim do mundo, Leonardo acho que as vezes falta um pouco de intolerãncia de entender o outro, digo isso de ambas as partes, tanto da pessoa que acha o concerto chato e cheio de regras e do músico ou ouvinte de música clássica em simplismente tachar o outro de ignorante, fazendo caretas ou com sinal de não com a cabeça como reprovação (isso é hilário e acontece, chegar a fazer o famoso beicinho tão comum as crianças), ainda acho e devo insistir que falta tolerância de ambas as partes em se entenderem. agora qual é a solução? bem, repito o que disse no post anterior, acho que conscientizar de forma clara a importância de certos procedimentos se faz necessário, e se permitir também, como já citei Anne sophie encontrou uma forma, agora cabe a cada artista encontrar a sua forma caso isso lhe incomode.
    desculpe por dois posts seguidos, estava lendo e achei que isso poderia acrescentar algo.

  17. Daniel,

    Só costumo separar uma coisa: 1) a expectativa pela educação que as pessoas fariam bem em ter em qualquer lugar e 2) uma crítica a como o ambiente de um concerto, de um banco, do trânsito ou de um restaurante é organizado. Se eu vou ao banco e alguém é mal educado comigo eu não saio falando mal da cultura opressora e elitista dos bancos, saio no máximo falando mal da falta de educação que acompanha as pessoas em qualquer lugar do mundo (mas mais provavelmente não vai ser exatamente um motivo de surpresa). Evocar esse ideal de humildade, tolerância e ecletismo pra criticar o ambiente do concerto pode confundir duas coisas diferentes, apesar de complementares: uma é que o formato do concerto se molde em favor das condições da música ser ouvida, outra é das pessoas terem educação ao fazerem o que quer que estejam fazendo. Se uma coisa for determinar a outra ao invés de valer por si própria, há o risco tanto de o concerto se tornar excessivamente condescendente nas condições de apreciação do espetáculo só por “educação” tanto a desavisados como a abusados, como de as pessoas, em nome da etiqueta dos concertos, se permitirem a destratar as outras criando um clima hostil. Quer dizer, separar os dois valores ao defender cada um deles faz bem, até pra não soarmos muito ingênuos em uma crítica.

    Sobre a passagem que você reproduziu, foi pertinente mesmo, mas acho que a adequação social que acontecia nessa época já foi totalmente superada: não há, senão pelos tostões que você vai ter que desembolsar na hora de comprar o ingresso, segregação social em um concerto no sentido dele ser inacessível a tal ou tal classe. Essa inacessibilidade poderia se dar pelo dinheiro, mas concertos hoje podem custar 5 reais ou pelo menos, pra comparação, bem menos do que qualquer show de música pop. Também poderia se dar pela etiqueta exclusiva dos iniciados de uma classe, mas isso não existe, senão o padrão parecido com o do próprio cinema de respeito ao espetáculo, o que não tem a ver com classe. E poderia ainda se dar pela vestimenta, o que há bastante tempo deixou de ser observado: qualquer pessoa pode ir de bermuda e boné pra um concerto que não vai ser impedido de entrar.

    E sobre a Anne-Sophie Mutter, ela soube mesmo evidenciar a unidade que a obra pedia pra ser observada pelo público. Mas nem sempre isso é possível, como quando os instrumentos precisam ser afinados novamente antes de um novo movimento (e aí os aplausos obviamente atrapalham bastante).

    Fico feliz pela sua boa recepção ao blog e apareça mais vezes pra conversarmos! :)

  18. E eu concordo contigo, realmente quando vamos a um concerto devemos lembrar que tem outras pessoas ali, é como quando se vai ao cinema, como você mesmo citou, é claro que a sugestão que faço deveria ser algo pré combinado, de qualquer forma ainda falta o bom senso das pessoas que vão, acho que no final a culpa é sempre do bom senso tanto na hora de criticar como de aceitar certas regras.

    quanto a esse papo de classe, bem eu também concordo contigo, hoje um bacana rico curte funk e um rapaz pobre da periferia curte música clássica, eu mesmo sou do subburbio, me advertiram muito que enfrentaria preconceitos em relação a isso mas nunca os enfrentei, nessa hora acho que o músico é muito compreensivo um com o outro. sobre os shows bem, tenho como exemplo o Roger Waters, que custará 180 a mais barata! e não é música Clássica, e já vi ótimos concertos nos domingos a um real, acho que até quanto a isso as coisas se igualam, o que fica mesmo contra a música clássica é um preconceito que ainda tá atrelado a esse passado.

    Leonardo eu que agradeço a ótima recepção e a possibilidade de podermos trocar informações e poder conversar sem aquela disputa de saber que vejo tão presente na internet. achei seu blog pois estou criando um Podcast sobre música com uns amigos (um professor de português, baterista que curte rock, um pscologo que gosta de música classica, eletrônico e funk e eu, imagina o que vai sair disso ai), determinamos que fariamos algo não tão aprofundado e nem superficial, seguindo ali o caminho do meio, um papo entre amigos, e o nome que batizamos foi: Euterpe despedaçada. =D estarei aqui sempre dando uma olhada e opinando quando achar conveniente.

  19. Excelente blog. Fiquei feliz em achar um blog desse nível em Português.

    Parabéns aos editores.

  20. Grande tema, bem abordado, parabéns. Com relação à pergunta inicial, em busca do “livro sobre a história do público de concerto”, o melhor que conheço está infelizmente só em alemão, que eu saiba: “Das 18. Jahrhundert: Der Bürger erhebt sich” (o século dezoito: o burguês/cidadão se levanta), de Peter Schleunig, Hamburgo, 1984. Trata-se de uma resenha sociológica sobre o desenvolvimento das relações entre artistas, ouvintes, organizadores e mecenas da música de concerto em meados do século dezoito. O autor sustenta que quase todo o comportamento do público atual vem dessa época. A ênfase é na Europa Central, de língua alemã, mas com muita informação sobre os países vizinhos também.

    Quanto ao problema principal, sobre como deveria se comportar um público, eu teria só duas observações: eu prefiro um público mal-educado, mas interessado, ao seu oposto (bem-educado e desinteressado). E o problema não se resolve na sala de concerto, mas na sala de aula, e em casa. Abs.

  21. F.S. Monteiro,

    Preciosíssima indicação! Agradeço muito.

    E é verdade: comentando este assunto a partir da proposta do Terauds deu até um remorso de reduzi-lo às etiquetas do concerto nesta discussão mais específica, quando na verdade obviamente ele abrange a prioridade de questões que já vem de fora do concerto.

    Abraços!

  22. Muitas vezes eu fico com raiva do comportamento de pessoas na platéia. Nesta crítica, incluem-se, por exemplo, quem atende celular no cinema. No show “Viva Elis” da Maria Rita, em Belo Horizonte, vi várias pessoas na platéia com fone de ouvido, escutando a narração do jogo de futebol Atlético MG x Cruzeiro. Pô, ficassem em casa então!
    Até para ir a espetáculos populares tem de saber comportar-se, e respeitar o artista.

  23. Post muitíssimo interessante. Eu conheço um pouco de música clássica, logo sei que não devemos aplaudir entre um movimento e outro, somente no início da apresentação para receber os músicos e no final, para mostrar nossa gratidão.
    Como aprendi isso? Pela regra do “macaco”: se os outros aplaudirem, eu aplaudo. Se der errado, não errei sozinho.

    Quem foi à virada cultural em São Paulo para tentar ouvir um pouco de música erudita sofreu.
    A Polícia não parava de passar em cima da gente com aquele helicóptero barulhento, de vez em quando surgia um bêbado no meio da platéia que começava a “cantar”, algum funkeiro engraçadinho aumentava o volume do celular lá de cima do viaduto (a apresentação foi debaixo do viaduto do chá) <- não tenho absolutamente nada contra o funk, só não gostei da falta de educação… quando a música chegava na parte mais silenciosa (desculpem, não sei o termo técnico) o som dos outros abafava a música…

    Tudo isso que eu falei é falta de educação e de organização por parte da prefeitura, e não dá pra aguentar. Agora, o público, sem conhecimento mas interessado, como disse F.S. Monteiro, aplaudiu em quase todos os finais de movimento, e ninguém teve um ataque por causa disso. O maestro da orquestra municipal se deu o trabalho de explicar ao público quem era o compositor de cada peça e ainda em que ele se inspirou para escrever a música, numa espécie de contexto histórico. Isso vai contra as regras de etiqueta, mas tornou a apresentação mais interessante. Logo, chamou mais a atenção do público, o que é muito bom para a música erudita, tão pouco apreciada no Brasil.

  24. Leonardo,

    Acho que eventos como esse da virada cultural cumprem aquela pluralidade que mencionei de formatos possíveis de apresentação da música clássica. Como o ambiente é outro, não haveria sentido em aplicar as mesmas etiquetas de uma sala de concerto, porque ele simplesmente é outra coisa mesmo: em apresentações a céu aberto mesmo o som da rua já interfere em qualquer contemplação pretensamente solene, por isso o que esse formato busca é outra coisa, é um ambiente justamente mais informal e familiar. Isso mostra que uma “etiqueta” não é, de maneira nenhuma, algo simplesmente intrínseco da música clássica, porque a nossa própria relação com ela é plural: não ouvimos música clássica apenas calados em uma sala de concerto, mas em casa (seja concentrados ou lavando a louça), no carro, talvez no trabalho, na casa dos amigos, talvez mesmo executando algo descontraidamente entre outras pessoas, sem falar em outros formatos de apresentação, etc. A etiqueta da música só surge de contextos específicos, cada um com suas próprias prioridades selecionadas. Por isso não faz sentido eleger a etiqueta de um único formato de apresentação possível e usá-la para ditar a relação das pessoas com a música, como se isso fosse sequer possível em absoluto, pois isso é trocar a ordem das coisas: a espontaneidade da relação das pessoas com a música é que faz com que a música mereça formatos que promovam a sua presença da maneira mais natural e completa na vida delas. E a lição disso até dissolve qualquer militância das etiquetas aqui, pois se vê que tanto não é preciso abolir o formato do concerto silencioso (que eu defendo e que é altamente pertinente pra um momento devotado de contemplação) em nome de maior espontaneidade com a música clássica, quanto não é preciso defender o formato do concerto silencioso como se ele fosse o único e último refúgio de uma audição musical correta: não é um formato de concerto que deve determinar a relação das pessoas com a música, que é sempre muito mais plural e sempre muito mais variada de pessoa pra pessoa, o que importa é que seja possível contarmos com diferentes formatos, cada um com as suas prioridades e mesmo lições pra dar na nossa descoberta de experiências com a música, pra termos disponíveis sempre meios de nos relacionarmos com a música de maneira completa, sem exclusivismo e sem misturar etiquetas e prioridades nessa relação que é essencialmente plural pra qualquer pessoa.

    Sobre os comentários do maestro, eles também não vão contra nenhuma etiqueta: há desde concertos em que o intérprete se permite fazer considerações que julgue importantes e bem-vindas antes das peças até concertos didáticos, pensados nesse formato mesmo.

  25. Quando descobri o video abaixo, lembrei do seu post. O vídeo é a melhor resposta para o problema esboçado, e nos prova que a felicidade com a chamada música de concerto cabe num apê de sala e dois quartos, cheirando a suor e cerveja, e separado de uma noite de inverno em Leipzig por vidraças embaciadas.

    Muito obrigado ao jovem regente Felix Pätzold (26 anos) e à moçada (quase 80 jovens artistas) que ele reuniu.

    http://www.youtube.com/watch?v=Wi0ekhf6_J0

  26. Buenas,

    Meu entendimento é similar àquele comentado por um dos participantes no post “nota sobre as boas maneiras”. Basicamente, antes da revolução francesa, as maiores demonstrações de etiqueta que se era capaz eram reservadas para as liturgias, para demonstrar o máximo respeito pelos ritos religiosos e, também, porque se tinha a idéia que nessas liturgias, o que se transmitia era a própria Tradição Divina, quer dizer, algo que todos deveriam dar o máximo de si para preservar intacta para sempre.

    Depois, do século XIX pra frente, com a perda do transcendente na esfera pública e a substituição pelo humanismo em suas diversas formas, começaram a colocar as coisas que o ser humano produziu de mais elevado no topo da hierarquia de coisas, quer dizer, agora o que se deveria manter intacto para sempre passa a ser as tradições humanas e não mais a Tradição Divina. Assim, a música clássica nada mais é que uma dessas “tradições humanas”, à qual se passou a direcionar o máximo respeito possível, sendo que no caso, os dramas dessa tradição não são mais dramas míticos/simbólicos/alegóricos/narrativos como são os dramas das liturgias, mas meramente dramas românticos, humanos demais digamos assim. Daí que por um lado, os compositores e intérpretes românticos/pós-românticos exigem respeito pelos dramas que procuram representar, mas esses dramas não têm apelo para todo tipo de pessoa, pois nem todo mundo se preocupa e se angustia com questões humanas que geram dramas para certos espíritos. No pré-romântico era mais fácil cativar o povo para as liturgias, pois era tido como aquilo que Deus entregou aos homens, o que dava muito mais autoridade, e não apenas o que o próprio homem criou.

    A solução? Acho que não tem a curto e médio prazo, o quebra-galho no caso é simplesmente o que já foi falado aqui, investir em educação musical, certa criatividade nos concertos e tal, mas sem esperar que todo mundo venha.

  27. Caro Cleverson,

    O dado que você traz é muito importante mas me parece um processo um tanto anterior ao romantismo. Indico fortemente a leitura do livro “The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society”, de Brad S. Gregory, exatamente sobre a mudança que você procura descrever.

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