19abr 2017
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Vamos ouvir Wagner? Especial de 200 anos – Die Walküre: Ato I: Cena III

Dw18-Die-Walkure-ArthurRackham-sqsSieglinde e Siegmund, por Arthur Rackham

Depois de termos ouvido as duas primeiras cenas do primeiro ato de Die Walküre, hoje concluiremos ouvindo a terceira e última cena! Trata-se, além da cena mais emocionante, de um dos exemplos mais poderosos que eu conheço da música a iluminar o sentido de um mito, então… não percam! No final vou querer saber a opinião de quem ouviu.

Com poucas adaptações, como sempre, a tradução do libretto é de Luiz de Lucca, do site Wagner em Português.

Wälse

08. 1. Beginning (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Siegmund está sozinho. Assim como seu “chão” cai, o chão da música, saindo do contexto de dó menor da cena anterior e entrando em lá menor nesta cena, desaba para um acorde de segunda inversão da diminuta de fá sustenido. A noite é plena e a sala é iluminada por um fraco lume da lareira.

08. 2. Motive of Hunding (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

O ritmo do Motivo de Hunding é onipresente, dominando a cena mesmo em sua ausência.

Siegmund está atirado ao tapete junto ao fogo, e fica, por alguns momentos, a cismar consigo mesmo, com os sentidos fortemente agitados.

08. 3. Motive of Notung (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

O trompete continua a tocar aquele motivo misterioso ligado ao olhar de Sieglinde, que parecia querer dizer alguma coisa a Siegmund antes de subir ao quarto.

Motivo da Espada

08. 4. Ein Schwert verhiess mir der Vater (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Siegmund diz, sempre sob o ritmo implacável do Motivo de Hunding:

Ein Schwert verhieß mir der Vater,
Prometeu-me o pai uma espada;
ich fänd’ es in höchster Not.
eu a encontraria quando em extrema dificuldade.
Waffenlos fiel ich
in Feindes Haus;
Sem armas, fui dar em casa de inimigo;
seiner Raches Pfand,
como seu penhor de vingança,
raste ich hier.
aqui tenho pousada.

A orquestra toca então o Motivo do Amor.

Ein Weib sah ich,
Vi uma mulher
wonnig und hehr:
adorável e sublime –
entzückend Bangen
arrebatada ânsia
zehrt mein Herz.
me consome o coração.

Mas o Motivo de Hunding volta a atormentar seus pensamentos.

Zu der mich nun Sehnsucht zieht,
Para atrair-me agora a minha ansiedade
die mit süßen Zauber mich sehrt,
àquela que me feriu com doce magia,
im Zwange hält sie der Mann,
sob opressão, a retém o homem,
der mich Wehrlosen höhnt!
que burla de mim, que estou indefeso!
Wälse! Wälse!
Wälse! Wälse!
Wo ist dein Schwert?
Onde está tua espada?
Das starke Schwert,
A poderosa espada,
das im Sturm ich schwänge,
aquela que eu mova na hora do infortúnio:
bricht mir hervor aus der Brust,
romper-se-á para fora de meu peito
was wütend das Herz noch hegt?
o que o coração, furioso, ainda contém?

Não esqueçam de respirar por aí, porque o momento é de tirar o fôlego!

Siegmund está desarmado para o combate iminente com Hunding, mas lembra que seu pai, por quem aqui ele clama pelo nome de Wälse, prometeu que ele encontraria uma espada providencial em um momento de necessidade.

No ápice dessa crise do herói, as achas do fogo se rompem (novamente com o motivo ainda misterioso):

08. 5. Was gleisst dort hell (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Das brasas, que emitem fagulhas, lança-se imediatamente um brilho agudo sobre o ponto do tronco que o olhar de Sieglinde havia indicado, onde se nota nitidamente o punho de uma espada ali cravada.

Was gleißt dort hell
O que ali brilha, tão claro,
im Glimmerschein?
na luz vacilante?
Welch ein Strahl bricht
Que raio é este que irrompe
aus der Esche Stamm?
do tronco do freixo?

A orquestra toca repetidas vezes o tal motivo até então misterioso – obviamente, já conseguimos saber: trata-se do Motivo da Espada.

Motivo da Espada

Des Blinden Auge
A cegar-me os olhos,
leuchtet ein Blitz:
esplende um raio:
lustig lacht da der Blick.
expressivo, lá está sorrindo o foco.

A orquestra é dominada pelo Motivo da Espada, desenvolvendo-o por toda a parte.

Wie der Schein so hehr
Como este brilho, tão sublime,
das Herz mir sengt!
me queima o coração!
Ist es der Blick
Será isto o olhar
der blühenden Frau,
da mulher radiosa,
den dort haftend
que ali o fixou
sie hinter sich ließ,
e deixou atrás de si,
als aus dem Saal sie schied?
ao sair da sala?

Sempre sobre o Motivo da Espada, o fogo da lareira começa a decrescer, gradualmente, e Siegmund se lembra do efeito do olhar de Sieglinde em seu espírito:

Nächtiges Dunkel
A escuridão da noite
deckte mein Aug’;
cobriu-me os olhos;
ihres Blickes Strahl
a luz de seu olhar
streifte mich da:
de lá me atingiu;
Wärme gewann ich und Tag.
recebi calor e luz.
Selig schien mir
Abençoada, brilhou sobre mim
der Sonne Licht;
a luz do Sol;
den Scheitel umgliß mir
iluminou-me a fronte
ihr wonniger Glanz,
o seu fulgor deleitoso,
bis hinter Bergen sie sank.
até colocar-se atrás das montanhas.

Um novo e tênue clarão é emitido do fogo.

Noch einmal, da sie schied,
Mais uma vez, de lá partiu
traf mich abends ihr Schein;
e tocou-me, crepuscular, o seu brilho;
selbst der alten Esche Stamm
o próprio tronco do velho freixo
erglänzte in goldner Glut:
refulgiu em áureo ardor:
da bleicht die Blüte,
então, à flor esmaecida
das Licht verlischt;
a luz revive;
nächtiges Dunkel
a escuridão da noite
deckt mir das Auge:
encobre-me os olhos:
tief in des Busens Berge
fundo, no interior de meu peito,
glimmt nur noch lichtlose Glut.
oscila agora só um ardor sem luz.

O fogo se apaga por completo; faz-se a noite plena. O ritmo do Motivo de Hunding volta a dominar a cena e o ânimo de Siegmund.

Notung

A música modula de dó menor (tonalidade paralela da relativa de lá menor, que vinha desde o início da cena) para sol maior e a porta do aposento ao lado se abre suavemente:

09. 1. Schlafst du, Gast (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Sieglinde, trajada com uma roupa branca, adianta-se e caminha suave mas rapidamente em direção à lareira. A orquestra toca a segunda parte do Motivo dos Volsungs e uma variação do Motivo da Piedade, e Sieglinde diz:

Schläfst du, Gast?
Dormes, hóspede?

Siegmund ergue-se e pergunta:

Wer schleicht daher?
Quem vem lá?

Sieglinde responde:

Ich bin’s: höre mich an!
Sou eu: escuta-me!
In tiefem Schlaf liegt Hunding;
Hunding caiu em sono profundo;
ich würzt’ ihm betäubenden Trank:
adicionei uma droga à sua bebida noturna:
Nütze die Nacht dir zum Heil!
Aproveita a noite para te salvares!

Siegmund a interrompe calorosamente:

Heil macht mich dein Nah’n!
Tua proximidade é o que me salvou!

Sieglinde então prossegue:

Eine Waffe laß mich dich weisen:
Deixa-me mostrar-te uma arma:
O wenn du sie gewännst!
Oh, se tu a conquistas!
Den Herhrsten Helden
dürft’ ich dich heißen:
Poderei chamar-te o mais augusto dos heróis:
dem Stärksten allein
apenas ao mais forte
ward sie bestimmt.
ela foi destinada.

Aqui a orquestra toca uma variação do Motivo da Espada, que alguns comentadores chamam de Motivo da Vitória e que aparecerá mais vezes:

Motivo da Vitória

09. 2. O merke wohl, was ich dir melde (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

O merke wohl, was ich dir melde!
Oh, atenta bem ao que eu te anuncio!

E Sieglinde narra sua própria história reveladora:

Der Männer Sippe
Os homens da família
saß hierim Saal,
sentavam-se aqui na sala,
von Hunding zur Hochzeit geladen.
convidados por Hunding a suas bodas.
Er freite ein Weib,
Ele desposou uma mulher,
das ungefragt
que, não consultada,
Schächer ihm schenkten zur Frau.
ladrões lhe deram como esposa.
Traurig saß ich,
Eu me sentava, infeliz,
während sie tranken;
enquanto eles bebiam;
ein Fremder trat da herein:
entrou, então, um estranho:

A orquestra, modulando de sol maior para mi maior, toca o Motivo do Valhala, identificando o estranho como o próprio Wotan.

ein Greis in blauem Gewand;
um ancião num traje azulado;
tief hing ihm der Hut,
ele mantinha baixo o chapéu,
der deckt’ ihm der Augen eines;
cobrindo-lhe um dos olhos,
doch des andren Strahl,
mas o brilho do outro
Angst schuf es allen,
amedrontava a todos;
traf die Männer
sein mächt’ges Dräu’n:
seu forte aspecto ameaçador
lancinava os homens:

As cordas tocam o Motivo do Sofrimento em movimento ascendente.

Mir allein
Só a mim
weckte das Auge
aquele olho sugeriu
süß sehnenden Harm,
uma doce e saudosa tristeza,
Tränen und Trost zugleich.
de lágrimas e consolo a um só tempo.

Os metais já voltam a tocar o Motivo da Espada.

Auf mich blickt’ er
Ele olhava para mim
und blitzte auf jene,
e fulminava sobre eles,
als ein Schwert in Händen er schwang;
enquanto nas mãos brandia uma espada;
das stieß er nun
ele então a impeliu
in der Esche Stamm,
ao tronco do freixeiro,
bis zum Heft haftet’ es drin:
nele a inserindo até o punho:

Tendo acabado de voltar de mi maior novamente para sol maior, a orquestra toca o Motivo da Espada em todo o seu esplendor.

dem sollte der Stahl geziemen,
seria merecedor da lâmina
der aus dem Stamm es zög’.
aquele que a extraísse do tronco.

A harmonia modal do Motivo do Valhala continua presente, em um acorde que preserva o mi maior anterior.

09. 3. Der Manner alle (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Der Männer alle,
so kühn sie sich mühten,
Dentre os homens todos,
que com tanta valentia se esforçaram,
die Wehr sich keiner gewann;
nenhum deles ganhou a arma;
Gäste kamen
visitantes vieram
und Gäste gingen,
e visitantes se foram,
die stärksten zogen am Stahl –
os mais fortes forçaram a lâmina –
keinen Zoll entwich er dem Stamm:
nem numa polegada ela escapou do tronco:

Motivo da Espada toca inalterado, mostrando como ninguém conseguiu movê-la da árvore.

dort haftet schweigend das Schwert.
lá, cravada e silenciosa, ficou a espada.

As cordas então assumem o Motivo do Valhala.

Da wußt’ ich, wer der war,
Então eu fiquei sabendo quem era
der mich Gramvolle gegrüßt;
aquele que me saudara em meu pleno pesar;
ich weiß auch,
sei também
wem allein
a quem unicamente
im Stamm das Schwert er bestimmt.
ele destinou a espada que está no tronco.

Motivo da Espada domina a orquestra triunfantemente, com a música saindo de um arpejo da diminuta de fá sustenido para encontrar a tônica de sol maior e o Motivo da Vitória:

09. 4. O fand’ ich ihn heut (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

O fänd’ ich ihn heut
Oh, encontrei-o hoje
und hier, den Freund;
e aqui: o amigo;
käm’ er aus Fremden
de estranhas terras ele veio
zur ärmsten Frau:
à mais desvalida mulher:
Was je ich gelitten
O que andei padecendo
in grimmigen Leid,
numa tristeza atroz,
was je mich geschmerzt
o que me andou ferindo
in Schande und Schmach –
com vergonha e desonra –
süßeste Rache
sühnte dann alles!
por tudo isso imporia a mais doce vingança!
Erjägt hätt ich
E eu recobraria
was je ich verlor,
o que me esteve perdido;
was je ich beweint,
aquilo por que andei chorando,
wär’ mir gewonnen,
ser-me-ia devolvido;
fänd ich den Heiligen Freund,
e se eu encontrasse o abençoado amigo,
umfing’ den Helden mein Arm!
envolveria o herói em meus braços!

09. 5. Dich, selige Frau (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

A orquestra toca uma versão acalorada do Motivo dos Volsungs, e Siegmund, abraçando-a, constantemente sobre o Motivo da Vitóriadiz:

Dich, selige Frau,
Tu, mulher ditosa,
hält nun der Freund,
tens agora o amigo,
dem Waffe und Weib bestimmt!
a quem arma e mulher se destinam!
Heiß in der Brust
Ardente, no peito,
brennt mir der Eid,
queima-me o juramento
der mich dir Edlen vermählt.
que une-me a ti, nobre ser.
Was je ich ersehnt,
Tudo aquilo que tenho almejado
ersah ich in dir;
encontrei em ti;
in dir fand ich,
em ti achei
was je mir gefehlt!
tudo que me sempre faltou!
Littest du Schmach
Sofreste a vergonha
und schmerzte mich Leid;
e a mim torturou a dor;
war ich geächtet,
eu fui desterrado,
und warst du entehrt:
e tu desonrada:
freudige Rache
feliz vingança
ruft nun den Frohen!
traz agora a alegria!
Auf lach ich
Rio-me alto,
in heiliger Lust –
em sagrado prazer,
halt ich die Hehre umfangen,
atando em meus braços a mulher sublime,
fühl ich dein schlagendes Herz!
enchendo-lhe o coração palpitante!

De repente a grande porta da casa se abre. Sieglinde, assustada, pergunta:

Ha, wer ging? Wer kam herein?
Ha! Quem saiu? Quem entrou?

Tomada pela surpresa, ela se desprende de Siegmund.

A porta permanece amplamente aberta; do lado externo, mostra-se uma sublime noite primaveril. É chegada a primavera, e a lua cheia ilumina adentro, enfocando sua luminosidade sobre o casal, que subitamente se torna plenamente visível.

Siegmund responde:

09. 6. Keiner ging (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Keiner ging,
doch einer kam:
Ninguém saiu, mas algo entrou;
siehe, der Lenz
lacht in den Saal!
vê: a primavera sorri adentrando a sala!

Com uma terna autoridade, Siegmund atrai Sieglinde a si, sobre o tapete, de forma que ela se senta a seu lado. A lua brilha com progressiva claridade e Wagner, que sempre dispensa a divisão entre recitativos e árias, em um misto de ambos para sustentar o desempenho dos cantores sobre a ação, aqui escreve praticamente uma ária (linda até não caber mais!):

10. Wintersturme wichen dem Wonnemond (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

A música modula do sol maior anterior para si bemol maior.

Winterstürme wichen
dem Wonnemond,
Vão-se, em maio, as tormentas do inverno;
in mildem Lichte
em meiga luz
leuchtet der Lenz;
fulgura a Primavera;
auf linden Lüften
pelos ares temperados,
leicht und lieblich,
amenos e meigos,
Wunder webend
operando seus milagres,
er sich wiegt:
ela se move:
durch Wald und Auen
por florestas e prados,
weht sein Atem,
sopra o seu fôlego;
weit geöffnet
amplamente abertos,
lacht sein Aug’.
seus olhos sorriem.
Aus sel’ger Vöglein Sange
No gorjeio feliz do pássaro,
süß er tönt,
docemente ela ressoa;
holde Düfte
adoráveis fragrâncias
haucht er aus:
exala pelos espaços:
seinem warmen Blut entblühen
seu cálido sangue floresce
wonnige Blumen,
deleitosas flores;
Keim und Sproß
entspringt seiner Kraft.
seu alento desabrocha gérmens e rebentos.
Mit zarter Waffen Zier
Com a beleza de tenras armas
bezwingt er die Welt;
ela domina o Mundo;
Winter und Sturm wichen
der starken Wehr:
vão-se as fortes defesas do inverno e da tormenta:
Wohl mußte den tapfern Streichen
A esses intrépidos ventos, bem devem
die strenge Türe auch weichen,
ceder também as fortes portas;
die trotzig und starr
eles, obstinados e rijos,
uns – trennte von ihm.
apartam-nos dela.

A orquestra toca então o Motivo do Amor e Siegmund compara a Primavera [Lenz] recém chegada ao Amor [Liebe] recém despertado:

Zu seiner Schwester
Por seu irmão
schwang er sich her;
moveu-se ela para cá;
die Liebe lockte den Lenz:
o amor cortejou a primavera:
in unsrem Busen
em nosso peito
barg sie sich tief;
alojaram-se, ao fundo,
nun lacht sie selig dem Licht.
e agora riem-se, felizes, à luz.
Die bräutliche Schwester
Ao irmão noivo
befreite der Bruder;
a irmã liberta;
zertrümmert liegt,
was sie je getrennt;
cai por terra o que esteve a separá-los;
jauchzend grüßt sich
exultante, saúda-se
das junge Paar:
o jovem par:
vereint sind Liebe und Lenz!
unidos estão Amor e Primavera!

11. 1. Du bist der Lenz (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Sieglinde então declara:

Du bist der Lenz,
Tu és a Primavera,
nach dem ich verlangte
por quem ansiei
in frostigen Winters Frist.
no frígido tempo do inverno.
Dich grüßte mein Herz
Saudou-te o meu coração,
mit heiligen Grau’n,
com temor sacral,
als dein Blick zuerst mir erblühte.
quando teu olhar
pela primeira vez me despertou.

A música modula de si bemol maior para fá sustenido menor.

Fremdes nur sah ich von je,
Só estranhos antes eu via,
freundlos war mir das Nahe;
envolta por uma cercania sem amigos;
als hätt’ ich nie es gekannt,
como formas que eu jamais conhecera,
war, was immer mir kam.
era tudo o que me sempre vinha.
Doch dich kannt’ ich
Mas a ti eu identifiquei
deutlich und klar:
com nitidez e clareza:
als mein Auge dich sah,
assim que meus olhos te viram,
warst du mein Eigen;
te tornaste meu;
was im Busen ich barg,
o que eu guardava no peito,
was ich bin,
o que eu sou,

A música modula de fá sustenido menor para ré bemol maior.

hell wie der Tag
claro como o dia
taucht’ es mir auf,
emergiu de mim,
wie tönender Schall
qual sonante eco
schlug’s an mein Ohr,
batendo em meus ouvidos,
als in frostig öder Fremde
quando, em meio à fria e deserta estranheza,
zuerst ich den Freund ersah.
vi pela primeira vez o amigo.

Extasiada, ela se abraça a seu pescoço, e o observa, fitando-lhe a face.

A orquestra dialoga com o tema da chegada da primavera cantado por Siegmund, e ele, plenamente entregue, exclama:

11. 2. O susseste Wonne (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

O süßeste Wonne!
Oh, doce felicidade!
Seligstes Weib!
Ditosa mulher entre as ditosas!

E Sieglinde, fixa em seus olhos:

O las in Nähe
zu dir mich neigen,
Oh, deixa-me chegar-me a ti,
daß hell ich schaue
para que eu veja claro
den hehren Schein,
o brilho augusto
der dir aus Aug’
und Antlitz bricht
que teus olhos e semblante emanam
und so süß die Sinne mir zwingt.
e com tal doçura toma-me os sentidos.

A música modula de ré bemol maior para mi bemol maior.

Siegmund responde:

Im Lenzesmond
Na Lua primaveril
leuchtest du hell;
brilhaste luminosa;
hehr umwebt dich
cingem-te, nobres,
das Wellenhaar:
as ondas dos cabelos:
Was mich berückt,
errat ich nun leicht –
Agora facilmente decifro o que me deslumbra,

A música modula de mi bemol maior para dó maior.

denn wonnig weidet mein Blick.
pois voluptuosamente alimenta-me os olhos.

Sieglinde afasta os cabelos de Siegmund para trás da testa, e olha para ele, maravilhada:

Wie dir die Stirn
Como tua fronte
so offen steht,
ergue-se tão ampla,
der Adern Geäst
e os nós de tuas veias
in der Schläfen sich schlingt!
entrelaçam-se nas têmporas!
Mir zagt es vor der Wonne,
Estremeço ante o prazer
die mich entzückt!
que me arrebata!

E atenção! Os metais tocam novamente o Motivo do Valhala, aludindo novamente a Wotan. De que forma mais profunda ele ainda poderia ser uma ligação entre as histórias de Siegmund e Sieglinde?

11. 3. Ein Wunder, will mich gemahnen (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Sieglinde prossegue:

Ein Wunder, will mich gemahnen:
Faz-me lembrar um milagre:
den heut zuerst ich erschaut,
tendo-te hoje visto pela primeira vez,
mein Auge sah dich schon!
meus olhos já te haviam visto!

Siegmund responde:

Ein Minnetraum
Um sonho de amor
gemahnt auch mich:
também lembra a mim:
in heißen Sehnen
em momentos de ardente ânsia,
sah ich dich schon!
já me ocorreu ver-te!

As cordas assumem rapidamente um moto constante de colcheias, e Sieglinde diz:

Im Bach erblickt’ ich
Olhei, num riacho,
mein eigen Bild –
minha própria imagem –
und jetzt gewahr ich es wieder:
e agora torno a vê-la:
wie einst dem Teich es enttaucht,
como a revelou uma vez a água,
bietest mein Bild mir nun du!
mostraste-me tu meu semblante agora!

Siegmund responde:

Du bist das Bild,
És o semblante
das ich in mir barg.
que em mim acolhi.

Voltando subitamente seu olhar, Sieglinde exclama:

O still! Laß mich
der Stimme lauschen:
Oh, cala-te! Deixa-me ouvir-te a voz:
mich dünkt, ihren Klang
hört’ ich als Kind –
acho que ouvi seu timbre, quando criança –

Alterada, ela instiga a própria lembrança:

Doch nein, ich hörte sie neulich,
Mas não! Ouvi-a recentemente,
als meiner Stimme Schall
mir widerhallte der Wald.
quando a floresta
me repercutia o eco da minha voz.

Siegmund responde:

O lieblichste Laute,
Oh! O mais adorável som
denen ich lausche!
que posso ouvir!

Ouvimos o Motivo dos Volsungs, e Sieglinde, observando-lhe novamente os olhos, diz:

Deines Auges Glut
O ardor dos teus olhos
ergläntze mir schon:
já brilhara sobre mim:

Ouvimos então o Motivo do Valhala.

So blickte der Greis
Assim brilhava o ancião,
grüßend auf mich,
a saudar-me,
als der Traurigen Trost er gab.
dando conforto à minha desgraça.
An dem Blick
Pelo olhar,
erkannt’ ihn sein Kind –
reconheceu-o sua filha –
schon wollt’ ich beim Namen ihn nennen!
eu logo desejei chamá-lo por seu nome!

Se a figura misteriosa que deixou a espada no freixo era o pai de Sieglinde, e sabemos que ele era Wotan, então…!

Ela para, e logo prossegue suavemente:

12. 1. Wehwalt heisst du furwahr (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Wehwalt heißt du fürwahr?
Chamas-te mesmo “Doloroso”?

Siegmund responde:

Nicht heiß ich so,
Tal não me chamo,
seit du mich liebst:
desde que me vieste a amar:
nun walt ich der hehrsten Wonnen!
agora sou dono da mais sublime alegria!

Sieglinde pergunta:

Und Friedmund darfst du
froh dich nicht nennen?
E não poderias por felicidade
chamar-te “Pacífico”?

Siegmund:

Nenne mich du,
Chama-me tu
wie du liebst, daß ich heiße:
como queiras que eu me chame:
den Namen nehm ich von dir!
de ti recebo meu nome!

Sieglinde pergunta:

Doch nanntest du Wolfe den Vater?
Mas chamaste “Lobo” a teu pai?

Siegmund, sobre o Motivo do Valhala:

Ein Wolf war er feigen Füchsen!
Um lobo ele foi para raposas covardes!
Doch dem so stolz
strahlte das Auge,
mas por aqueles cujos olhos raiam altivos,
wie, Herrliche, hehr dir es strahlt,
como soberbamente brilham os teus,
der war: Wälse genannt.
ele foi chamado: Wälse.

A música modula de dó maior para mi menor.

Sobressaltando-se, Sieglinde responde:

War Wälse dein Vater
Se era Wälse o teu pai,
und bist du ein Wälsung,
e és tu um Wälsung [Filho de Wälse],
stieß er für dich
é para ti que ele inseriu
sein Schwert in den Stamm –
sua espada no tronco –
so laß mich dich heißen,
deixa-me pois chamar-te
wie ich dich liebe:
na forma que te amo:
Siegmund –
Siegmund [Voz de vitória] –
so nenn ich dich!
assim te chamo!

Sim, é estranho, mas Sieglinde é a irmã gêmea de Siegmund! Esse romance, incesto e adúltero diante das convenções sociais, obviamente não ficará incólume nem mesmo diante dos deuses, e Wotan terá que dar muitas explicações por ter unido esse casal (lembremos que a própria tempestade que levou Siegmund até a casa de Hunding já trazia uma ligação musical com Wotan, e era lá que ele próprio havia deixado a espada para Siegmund – haja nepotismo divino!).

Mas eis que Siegmund, o herói até então “doloroso” e deslocado, enfim assume a sua identidade heroica tomando posse de seu próprio nome! Quem pode segurar esse herói agora?!

Siegmund corre ao tronco da árvore, agarra o punho da espada, e diz, sobre fragmentos do Motivo dos Volsungs e o Motivo da Espada:

12. 2. Siegmund heiß ich (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Siegmund heiß ich
Siegmund me chamo
und Siegmund bin ich!
e Siegmund eu sou!
Bezeug’ es dies Schwert,
Tal confirma esta espada,
das zaglos ich halte!
que sem temor eu tomo!
Wälse verhieß mir,
Prometeu-me Wälse
in höchster Not
que, na mais alta aflição,
fänd’ ich es einst:
eu viria um dia a encontrá-la:
ich faß es nun!
eu a tomo agora!

E atenção que agora é de gelar a espinha!

Siegmund, que está a tomar posse da amante e da arma que o redimem por meio do amor verdadeiro, de repente canta em dó menor nada menos do que… o Motivo da Renúncia do Amor!

Motivo da Renúncia do Amor

12. 3. Heiligster Minne (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Heiligster Minne
höchste Not,
A alta aflição pelo amor sagrado,
sehnender Liebe
sehrende Not
a aflição ardente pelo ansiado amor
brennt mir hell in der Brust,
queima-me a brilhar dentro do peito,
drängt zu Tat und Tod:
impelindo ao ato e à morte:

O Motivo da Renúncia do Amor havia sido cantado por Alberich na ópera anterior, Das Rheingold, quando ele amaldiçoava o amor e estava prestes a roubar o ouro do Reno para forjar o maldito anel da estória, símbolo da renúncia do amor e do desejo de poder que atravessará a história dos próprios deuses. Por que Siegmund o cantaria agora? Por quê?! A questão preocupou até mesmo a Claude Lévi-Strauss, como mostrado pelo blog em post à parte aqui. Sugestões? Nos comentários!

Siegmund prossegue:

12. 4. Notung (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Notung! Notung!
Notung! [Necessária!] Notung!
So nenn ich dich, Schwert.
Assim te chamo, espada.
Notung! Notung!
Notung! Notung!
Neidlicher Stahl!
Cobiçada lâmina!
Zeig deiner Schärfe
schneidenden Zahn:
mostra a cortante extremidade do teu gume:
heraus aus der Scheide zu mir! –
sai-te do confinamento, a mim! –

Com um forte impulso, ele extrai a espada do tronco, sobre o triunfante Motivo da Espada, e a mostra a Sieglinde, que é tomada de espanto e êxtase!

12. 5. Siegmund, den Walsung (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Siegmund, den Wälsung,
siehst du, Weib!
Estás vendo, mulher, Siegmund, o Wälsung!

Os metais respondem com uma versão triunfante e rápida do Motivo dos Volsungs.

Als brautgabe
Como presente de união,
bringt er dies Schwert:
ele leva esta espada:
so freit er sich
assim ele toma em casamento
die seligste Frau;
a mulher mais venturosa;

Os metais respondem com o Motivo da Vitória.

dem Feindeshaus
da casa inimiga
entführt er dich so.
ele assim te leva longe.

A orquestra passa a acompanhar com o tema da chegada da primavera:

Fern von hier
Para longe daqui
folge mir nun,
agora segue-me
fort in des Lenzes
lachendes Haus:
afora, na casa sorridente da Primavera:
dort schützt dich Notung, das Schwert,
lá te protege Notung, a espada,

Ouvimos o Motivo do Amor.

wenn Siegmund dir liebend erlag!
ainda que, por amor teu, Siegmund morra!

Então ele a abraça, para levá-la embora.

12. 6. Bist du Siegmund (G. Solti – VPO & Chor der Wiener Staatsoper – 1965):

Mas ela, desvencilhando-se extasiada, para diante dele e diz:

Bist du Siegmund,
És Siegmund,
den ich hier sehe –
a quem aqui vejo –
Sieglinde bin ich,
e eu sou Sieglinde [Doçura da vitória],
die dich ersehnt:
que ansiou por ti:
Die eigne Schwester
A própria irmã
gewannst du zu eins mit dem Schwert!
ganhaste, juntamente com a espada!

Sobre uma versão extasiada do Motivo do Amor, Siegmund responde:

Braut und Schwester
Noiva e irmã
bist du dem Bruder –
és tu para o irmão –
so blühe denn, Wälsungenblut!
floresça, pois, o sangue dos Wälsungen!

Bühnenbildentwurf_WalküreFotografia em preto e branco do design de Joseph Hoffmann para o fim do primeiro ato de Die Walküre, de 1876

A orquestra toca o Motivo da Espada, o Motivo do Amor e desenvolve uma coda esfuziante finalizando em sol maior. Siegmund atrai Sieglinde com impetuoso ardor, e, com um grito, ela se atira a seu peito – o pano cai rapidamente.

FIM DO PRIMEIRO ATO! Que tal?

Este post pertence à série:
1. Vamos ouvir Wagner? Especial de 200 anos – Die Walküre: Ato I: Cena I
2. Vamos ouvir Wagner? Especial de 200 anos – Die Walküre: Ato I: Cena II
3. Vamos ouvir Wagner? Especial de 200 anos – Die Walküre: Ato I: Cena III

Este post tem 17 comentários.

17 respostas para “Vamos ouvir Wagner? Especial de 200 anos – Die Walküre: Ato I: Cena III”

  1. Se alguém enfrentou a audição até o final, o espaço dos comentários deve servir para troca de impressões!

    Há muitas coisas a se observar. Nota-se o tempo todo, por exemplo, como de fato o drama se torna o princípio estruturador da música – mas, diga-se, o contrário também ocorre. A técnica é arriscada, já que pode transformar tanto a música em uma aberração sem estrutura própria como o drama em uma ação arrastada e artificial. No entanto, quanto à estrutura da música, Wagner a organiza com uma simetria e um critério geral inspirado em formas tradicionais nunca revogados, como já mostrado nas famosas análises de Lorenz e mesmo no post “Forma musical” do próprio blog, que pode ser lido aqui: http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/forma-musical. E quanto ao drama, o resultado parece oferecer, senão um realismo fluido, uma linguagem elevada de expressão lírica – Wagner queria ser uma espécie de Ésquilo do seu tempo. É esse, afinal, o conceito de “Obra de Arte Total” [Gesamtkunstwerk] do drama musical wagneriano colocado em prática.

    Não foi possível explorar muito, mas a escrita vocal também é muito notável: desde “O Holandês Voador”, de 1843, Wagner não emprega mais as tradicionais divisões entre árias e recitativos, mas apenas versos contínuos, algumas vezes com um forte sentido métrico e poético, e cujo contorno melódico dialoga constantemente com a orquestra. Em especial nesta última cena a música escrita para Siegmund e Sieglinde é de um rigor muito grande, com motivos musicais interagindo constantemente na própria linha melódica de cada um deles.

    E então temos o uso de leitmotive, que, diferente de um mero jogo de citações musicais, também é bastante complexo, influenciando a sintaxe da música de modo muito livre. Leonard Bernstein, em famosa apresentação do programa Young People’s Concert (que pode ser assistido aqui: http://www.youtube.com/watch?v=O09V4NQkOKI), chamava a atenção para a escrita profundamente original de Wagner no seu tratamento de motivos musicais desde o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de 1865.

    Por fim, o tratamento harmônico também se molda ao drama, em harmonias típicas para cada personagem e especialmente as modulações que desafiam a noção de uma tônica, empregando, para efeitos expressivos, constantemente o cromatismo. Essa tendência seria nada menos do que um dos pontos de partida para a dissolução da estrutura tonal clássica. Para ficarmos com um exemplo, o motivo de Hunding sempre surge na tonalidade “errada” da tônica: da primeira vez, ele entra aparentemente em fá menor, mas o contexto musical é de dó menor. Aí vem um acorde de sol maior, ou seja: o fá menor só podia ser a subdominante menor (iv) e sol maior a dominante maior (V) da tônica dó menor, o que é ambíguo e genial! Afinal, o que esperar de um sujeito como Hunding, cujo tema é rude até mesmo com as regras básicas da harmonia?

    Espero que a série, mesmo que longa, tenha dado um pontapé inicial no entusiasmo de quem estiver disposto a ouvir a música de Wagner.

    Abraços!

  2. Ah, sim! E o Motivo da Renúncia do Amor? Me parece que é preciso ter uma visão menos mecânica da relação dos motivos musicais com o drama, e entender que o ato de Siegmund, por reverberar o tema da renúncia do amor, desperta o seu motivo musical (assim como nas outras duas grandes ocorrências dele: na despedida de Wotan e na imolação de Brünnhilde).

    De todo modo, uma boa explicação eu encontrei entre essas notas escritas por Larry Brown: http://www.rwagner.net/contrib/lb/e-walkure.html

    “At first it seems puzzling that Siegmund sings ‘Holiest love in highest need’ (94) to the so-called Renunciation of Love theme. Why does he sing this theme at the moment he is longing for true love? Note that Alberich first put a curse on love (15-16) which is distinct from the curse on the ring he pronounces later in scene four. Siegmund falls under this curse on love, as this new relationship with Sieglinde is doomed because of its incestuous nature, which Wotan by law must punish. Compare this use of the ‘renunciation of love’ motif with a similar case in Götterdämmerung. In Act One, scene 3, Brünnhilde vows, ‘I shall never relinquish love’ (276), set to the ‘renunciation’ theme, but her refusal to give up the ring causes her to fall under its possessive spell at this moment. For these reasons, this motive might better be called the Love Curse. Wagner uses it in this scene in Valkyrie to connect Siegmund’s action to Wotan’s grand scheme, Siegmund becoming his unwilling means to regaining the ring (Cooke)”.

    E para interessados em análises filosóficas sobre a história, recomendo este livro disponível on-line: http://www.wagnerheim.com/

  3. Leonardo, parabéns por esta série ! O seu trabalho e dos demais autores do blog é de extrema relevância para aqueles que, assim como eu, querem avançar no campo da compreensão da música clássica. Muito obrigado por compartilharem conosco o conhecimento de vocês, por utilizarem uma didática acessível, tão fundamental à compreensão de assuntos e conceitos por vezes tão complexos e cheios de desdobramentos como a música wagneriana apresentada aqui.

  4. Muito bom, Leo.

    Um tema que me interessa é tentativa dos “scholars” de encontrarem traços de outros compositores na música de Wagner. É inegável que Wagner foi um homem do seu tempo e necessariamente sofreu influência de seus colegas. Por exemplo, Berlioz em Tristão é evidente, como muito bem observou Bernstein no seu vídeo-aula. As harmonias complexas e efeitos sonoros de Liszt. Mesmo na famosa Cavalgada das Valquírias encontramos um pouco de Schumann (Scherzo do Overture, Scherzo e Finale op.52). Por outro lado não lembro de ter lido nada sobre a influência direta de Beethoven, que segundo Wagner foi o mais importante compositor de sua vida. Beethoven foi um mestre no tratamento de pequenas ou mesmo micro-estruturas musicais. Em várias de suas obras, Beethoven lança uma frase num movimento para depois desenvolver a mesma frase em outro movimento, conferindo uma ligação extrema em toda obra. Daí, a forma-sonata encontra em Beethoven o maior contador de histórias. No caso de Wagner, todos os libretos de suas óperas foram escritos muito tempo antes da música ser colocada no papel. O que leva muita gente a concluir que primeiro veio o texto e depois a música. Tenho dúvidas sobre isso. Lembro de ter lido que Wagner não era diferente de outros compositores, os temas musicas apareciam na cabeça antes dos textos. Minha dúvida é, já que nada do processo de composição foi deixado pelo compositor, se os leitmotives já tinham sido escritos na mesma época dos libretos. Desta forma, Wagner, ao longo dos anos, os teria tratado com a mesma técnica artesanal de Beethoven. É impressionante como Das Rheingold comporta quase todos leitmotives da tetralogia.

  5. É verdade, Bosco: que interessante tentar pensar na influência prática de Beethoven em Wagner. De fato, o desenvolvimento motívico seria a ligação mais natural entre a técnica de ambos (lembremos de como Beethoven gerava obras inteiras através do desenvolvimento de um motivo básico: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/240-anos-de-beethoven-10-momentos-bizarros-parte-ii#razumovsky). Outra influência poderia ser aquela filosofia da redenção na obra de Beethoven, de apresentar questões tão musicais quanto dramáticas e de resolvê-las em um arco simétrico (o famoso caminho das trevas para a luz), algo que aparece em tantas de suas obras. Um exemplo que acho bem significativo em Wagner é Tannhäuser: não seria o final, com o coro dos peregrinos, uma espécie de “Hino à Alegria” mais espiritual?

    E pensar em como Wagner compacta e prevê com tanta ambição e unidade todo o ciclo desde Das Rheingold é mesmo impressionante! O ciclo em si também tem um caminho formal que a sequência de motivos acompanha bem: em uma gigante forma-sonata, Das Rheingold como uma introdução, Die Walküre como a Exposição, Siegfried como o Desenvolvimento e Götterdämmerung como a Reexposição.

  6. …e de bônus, Wagner nos oferece um enredo interessantíssimo :)

    Vamos aguardar o livro de Alex Ross sobre Wagner, mas creio que o caminho para entender a música de Wagner, como você também explicita, é Beethoven.

  7. Afinal, o próprio Wagner disse que sua obra era uma “continuação” da Nona Sinfonia de Beethoven, que para ele teria inaugurado a Arte do Futuro ao transcender o universo próprio da música instrumental para alcançar a música vocal, integrando a ambas – exatamente a intenção de Wagner com os seus “dramas musicais”.

    Duas leituras interessantes por enquanto:

    1) “Death-Devoted Heart: Sex and the Sacred in Wagner’s Tristan und Isolde”, de Roger Scruton (há tradução pela É Realizações para o português, feita pelo Pedro Sette-Câmara, e Bruno Gripp contribuiu no capítulo 4).

    Nas págs. 91-92 ele fala sobre o desenvolvimento motívico de Beethoven comparando-o a Wagner:

    “Beethoven’s architecture, in works such as his Fifth Symphony, violin concerto, and third piano concerto, depends upon repetition of rhythmic motives that can be detached from the melodies which first impress them on the listener, and can be reduced to purely metrical form. These motives, though recognizable from their rhythmic profile, are melodically generated. The four-note motive that sets the first movement of the Fifth Symphony in motion is not hammered out but “sung,” with the G – E-flat interval absolutely integral to the effect. Even the repeated notes on the timpani that open the violin concerto owe their reverberation in the memory to the melodic and harmonic sequence that they prefigure, which lends them a half-cadential character.

    Wagner’s motives in Tristan also have pronounced rhythmic contours. The cadence onto F major that finally sets the Prelude in motion (ex. 4.2) introduces the motive of the Look, the power of which is inextricably connected to the syncopated structure of its first three-note phrase (motive 4). This phrase places the accent on the weak middle beat of the triplet, while forcing the sixteenth note that follows to lean heavily on the first note of the succeeding measure. This rhythmic device is repeated four times in the theme (motive 5) that is built from this cell, and is then taken up by no less than four other motives that appear in rapid succession thereafter (motives 6, 7, 8, and 10). Each of these motives is distinct from that of the Look, which is itself only a cell in the melodic phrase that it introduces. But we hear them as “developing variations,” to use Schoenberg’s idiom, of the Look motive, since the rhythmic magnetism of the syncopation sounds through them all, attracting and repelling with the same unmistakable force”. (…)

    E na pág. 106 ele sintetiza a comparação:

    “One aspect of the comparison with Beethoven is undeniable: Wagner’s music, like the music of Beethoven’s mature symphonies, sonatas, and string quartets, involves constant development and variation of small-scale motives. And these motives are fraught with rhythmic and harmonic, as well as melodic, implications. Moreover, like Beethoven, Wagner often uses these motives to generate the background pulse of his music—as with the fractured triplet of the Look motive in all its obsessive repetitions throughout the Prelude. On the surface, however, Wagner did not obey the kind of large-scale formal constraints of a symphonic writer such as Beethoven, whose adoption and adaptation of the Classical structures were essential to his architectonic thinking. Moreover, symmetries of key and measure, strophic forms, variations, sonata form, and related devices do not of their own lead to the wondrous unity of the Beethoven symphonies. There are as many formless as unified sonata-form movements, and those elementary musical structures discerned by Lorenz—notably the arch or Bogen form (ABA) and the bar form (AAB)—can as easily sound shapeless as unified.”

    2) O livro que o próprio Wagner escreveu sobre Beethoven: http://users.belgacom.net/wagnerlibrary/prose/wlpr0133.htm (parece que também há tradução recente para o português, se eu não estou enganado).

  8. Como simples ouvinte e apreciador da múcica clássica, não me sinto capaz de fazer um comentário técnico ou elaborado. Sei dizer que: já ouvia muitas e muitas vezes A Valquíria, encantado pelos sons, tons, melodia, rítimo e acordes, sem sequer imaginar a bela, triste e terrível (ao mesmo tempo) história que a ópera encerrava. Assim como os quatro concertos de Vivaldi, A Valquiria assumiu posição de destaque e grandeza através deste Post, ricamente e detalhadamente ilustrativo e explicativo. O conhecer expande o prazer. Salve o Blogue, seus Editores, Wagner e sua bela e tenebrosa ópera. Meus gostar está completo. Torço para que o blog nunca deixe de trazer estas gratas surpresas. Foi como assistir in loco a ópera, extase indescritível. Deixo os comentários técnicos aos que é de direito e competência. JFarias-PE

  9. J. Farias,

    Fico feliz de saber que você leu os posts e que eles o ajudaram a apreciar a música de Wagner! Eu o incentivo a acompanhar os outros dois atos da ópera acompanhando o libretto – o ato 3 é ainda mais emocionante!

    Obrigado pelo comentário!

    Abraços!

  10. Usando o mesmo motivo de Alberich da abnegação de amor, por Siegmund no cume de paixão e amor presenciados por ele. é uma metáfora e significa que pelo amor mesmo (o amor sacrificador de Brünhilde, mais tarde no “Crépusculo”) vai ser anulado “der Fluch”, a maldição de Alberich, quando a Walküre devolverá o ouro do Reno às filhas do Rio Reno. Um motivo, usado para ser exorcizado pelo mesmo motivo, mas com poder contrário. Abnegação de amor versus amor como arma (a espada, simbolo fálico) contra o Neid (inveja) e a ganância pelo poder. Os políticos do Brasil e do mundo inteiro poderiam assistir à esta lição.
    Alexandre Marcos Eck-Nog, maestro (Suiça, Brasil)

  11. Prezado Leonardo,

    Gostaria de saber se você irá continuar com esta série e se também irá analisar outras óperas do Wagner, pois é sempre importante ter uma informação abalizada como a que você coloca aqui e que enriquece sobremaneira na hora de ouvir a obra.

    Obrigado e um abraço.

  12. Olá, Spartaco! Agradeço pelo seu incentivo!

    A ideia era mesmo fazer esta análise apenas com o primeiro ato da Valquíria. Porém, como é uma obra que me entusiasma muito, aos poucos tenho voltado a ela. Aqui, no item 12: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/musica-classica-e-porrada-parte-iii, comentei uma cena do terceiro ato e aqui: http://euterpe.blog.br/filosofia-da-musica/o-melhor-retrato-de-um-heroi-na-historia-da-musica-1-introducao fiquei de comentar cenas do segundo e do terceiro ato. Estou mais sem tempo do que nunca, mas não desisti.

    Obrigado e um abraço!

  13. Leonardo, muito obrigado por sua resposta.

    Fico no aguardo de seus comentários finais sobre a “Valquíria”. Realmente é bem melhor ouvir uma ópera após ler informações a respeito da mesma e que irão enriquecer a nossa audição.

    Abraço.

  14. Leonardo, “Death-Devoted Heart: Sex and the Sacred in Wagner’s Tristan und Isolde” (Roger Scruton) é uma fantástica aventura musico-filosófica. Fora o aspecto musical, Scruton nos leva a uma viagem junguiana em inspirada e impecável prosa pelo mundo que rodeia a historia de Tristan vista como um ato sacrificial arquetípico em três atos. A delicada erudição e inspirada escrita de Scruton faz desta obra uma divisória de águas para quem ouve Tristan e Isolda: nunca mais será a mesma experiência.

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