Ufa! Chegamos na metade da série de posts sobre a Paixão segundo São Mateus de Johann Sebastian Bach, e agora iniciaremos a análise da segunda parte da grande Paixão. No primeiro post demos uma geral na história da composição desta obra; no segundo post começamos a analisar a música número a número, trecho a trecho, e vimos a unção de Jesus em Betânia; no terceiro post, foi a vez de analisarmos a Última Ceia; no quarto post acompanhamos Jesus até o Monte das Oliveiras, e por fim no quinto post vimos as orações de Jesus, a traição de Judas e a prisão do Mestre. E após ser preso, para onde o levaram? É o que se pergunta no próximo número, na ária que abre a segunda parte da obra.
30. Arie (Alt) mit Chor 2: Ach, nun ist mein Jesus hin!
Para mostrar o sentimento de ausência de Jesus, Bach “sequestra” a tonalidade principal e faz todo mundo ficar procurando por ela. Claro, Bach não é Schoenberg e a peça não chega a ser atonal, ela somente fica passeando por várias tonalidades ao redor de Si menor sem se fixar em nenhuma em definitivo. Acompanhe:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-30-1.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 30. Ach nun ist mein Jesus hin! (1) (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Solo Ach, nun ist mein Jesus hin! |
Solo Ah, agora meu Jesus se foi! |
Chor 2 Wo ist denn dein Freund hingegangen, O du Schönste unter den Weibern? |
Coro 2 Onde foi o seu amigo, oh você, a mais bela entre as mulheres? |
Antes da voz entrar, a orquestra 1 começa em Si menor, flerta com Mi menor e parece concluir em Fá # Maior. Quando o solista canta ach (ah), o baixo contínuo desaparece: sumiu o chão, sumiu a referência da música. Então o baixo retorna e ouvimos a mesma progressão com a voz solista indo de Si menor para Fá # Maior.
Vocês lembram que a primeira parte da Paixão abriu com um diálogo entre os dois coros, lá no nº 1? Aqui o número inicial da segunda parte também é baseado num diálogo, só que entre o contralto solista e o coro 2, que oferece ajuda ao solista para procurar Jesus. Assim eles começam perguntando em Ré Maior mas logo modulam para Lá Maior: em qual tonalidade estará o Mestre?
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-30-2.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 30. Ach nun ist mein Jesus hin! (2) (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Solo Ist es möglich, kann ich schauen? |
Solo Será possível, posso ver isso? |
Chor 2 Wo hat sich dein Freund hingewandt? |
Coro 2 Para onde se dirigiu o seu amigo? |
O solista continua procurando Jesus em outras tonalidades: Fá # menor, Si menor e depois Mi menor; o coro inicia em Lá menor, passa por Sol Maior, Mi menor e retorna para Sol Maior.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-30-3.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 30. Ach nun ist mein Jesus hin! (3) (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Solo Ach, mein Lamm in Tigerklauen! Ach! wo ist mein Jesus hin? |
Solo Ah, meu cordeiro nas garras do tigre! Ah, para onde foi o meu Jesus? |
Chor 2 So wollen wir mit dir ihn suchen. |
Coro 2 Nós queremos com você procurá-lo. |
E o solista segue com sua procura: Ré menor, Lá menor, Si Maior… Lamm (cordeiro) é uma referência à Jesus, o Cordeiro de Deus, conforme já vimos nos nºs 1 e 11; e as garras do tigre (Tigerklauen) estão bem desenhadas nas notinhas rápidas do contralto no momento em que o baixo contínuo desaparece novamente.
Para onde foi meu Jesus? Mi menor, Lá menor, e Si Maior ao final da pergunta do solista, e o coro o procura em Mi Maior e em Fá # menor.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-30-4.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 30. Ach nun ist mein Jesus hin! (4) (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Solo Ach! was soll ich der Seele sagen, Wenn sie mich wird ängstlich fragen: Ach! wo ist mein Jesus hin? |
Solo Ah, o que devo dizer à minha alma, quando ela ansiosa me perguntar: Ah, para onde foi o meu Jesus? |
O solista retoma com Lá Maior no primeiro verso e Si menor no segundo, e então a música recomeça com a mesma pergunta e harmonias do início. Por fim tudo termina no ar, sem resposta, deixando os analistas a se perguntarem: a música modulou para Fá # Maior ou é a dominante de Si menor? E, afinal, para onde levaram meu Jesus?
31. Rezitativ (Mt 26,57-60a): Die aber Jesum gegriffen hatten
Evangelist Die aber Jesum gegriffen hatten, führeten ihn zu dem Hohenpriester Kaiphas, dahin die Schriftgelehrten und Ältesten sich versammlet hatten. |
Evangelista Aqueles que prenderam Jesus levaram-no para o sumo sacerdote Caifás, com quem os escribas e os anciãos estavam reunidos. |
O primeiro acorde do recitativo resolve a tonalidade da ária anterior: Si Maior! Porém o Evangelista redireciona-o para Mi menor, aqui enfim está Jesus. Lá estavam reunidos Caifás, o chefe de todos no mais agudo; os escribas no registro médio, e os anciãos lá embaixo pois eram os que menos tinham poder ali no grupo.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-31-2.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 31. Petrus aber folgete ihm (Bostridge – Herreweghe)]Evangelist Petrus aber folgete ihm nach von ferne bis in den Palast des Hohenpriesters; und ging hinein und setzte sich bei den Knechten, auf dass er sähe, wo es hinaus wollte. Die Hohenpriester aber und Ältesten und der ganze Rat suchten falsche Zeugnis wider Jesum, auf dass sie ihn töteten, und funden keines. |
Evangelista Pedro, porém, o seguiu de longe até o palácio do sumo sacerdote; e entrou e sentou-se entre os empregados para ver até onde tudo aquilo ia. Ora, os sumos sacerdotes e os anciãos e todo o conselho procuravam falso testemunho contra Jesus, para o matarem, e não encontravam nenhum. |
Pedro seguiu Jesus de tão longe quanto a distância entre as notas lá e fá # de von ferne (de longe), e foi até o palácio que ficava lá em cima no agudo. Se “ir” e “sair” são sempre cantados para cima, und ging hinein (e entrou) precisa se mover para baixo, descendente. E do pátio dos empregados ele espiava o que acontecia lá dentro, como um menino espiando por cima do muro: é o que vemos na palavra sähe (ver), dois fás como um par de olhos atentos em cima da pauta.
E olha quanta maquinação contra Jesus: Hohenpriester (sumos sacerdotes) tem um trítono entre voz e baixo; suchten falsche (procuravam falso [testemunho]) é cantado com notas do acorde diminuto, e dass sie ihn töteten (para eles o matarem) tem as notas do acorde de 7ª diminuta. Mas que bela reunião, hein!
32. Choral: Mir hat die Welt trüglich gericht
Dêem uma olhada na tradução deste coral, e vejam que comentário perfeito Bach encontrou para este Evangelho na estrofe 5 do coral luterano In dich hab ich gehoffet, versos de Adam Reusner (1533) e melodia de Seth Calvisius:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-32.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 32. Mir hat die Welt trüglich gericht’ (Philippe Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Mir hat die Welt trüglich gericht’ mit Lügen und mit falschem G’dicht, Viel Netz und heimlich Stricke. Herr, nimm mein wahr in dieser G’fahr, B’hüt mich für falschen Tücken. |
O mundo me julgou enganosamente com mentiras e com fábulas, muita armadilha e laços secretos. Senhor, fique do meu lado neste perigo, proteja-me dessas maldades. |
A sequência de notas de Welt (mundo) estica bastante a palavra: o muuuuundo é bem extenso. E Lügen (mentiras) é harmonizado de maneira bem cromática, com direito a acorde dissonante de 7ª diminuta no baixo.
Mas há um outro segredo bem interessante que se esconde por trás da harmonização do coral. Ou melhor, no seu interior: entre contralto e tenor, as vozes internas da harmonia, há um cruzamento de vozes nas palavras heimlich Stricke (laços secretos). Lá atrás, no nº 14, eu expliquei que os compositores procuram evitar o cruzamento de vozes, que acontece quando uma voz mais grave canta notas mais agudas que a voz acima dela. Bach é bem experiente para evitar essa prática, e assim pode utilizá-la sabiamente em momentos como este, enlaçando as vozes internas do coral para descrever acordos feitos por debaixo dos panos.
33. Rezitativ (Mt 26,60b-63a): Und wiewohl viel falsche Zeugen
Evangelist Und wiewohl viel falsche Zeugen herzutraten, fanden sie doch keins. Zuletzt traten herzu zween falsche Zeugen und sprachen: |
Evangelista E apesar de muitas falsas testemunhas se apresentarem, não acharam nada. Por fim se apresentaram duas falsas testemunhas e disseram: |
Die Zeugen (Chor 2) Er hat gesagt: “Ich kann den Tempel Gottes abbrechen und in dreien Tagen denselben bauen. |
As testemunhas (do coro 2) Ele disse: “Eu posso destruir o templo de Deus e em três dias reconstruí-lo”. |
As dissonâncias nas armações contra Jesus continuam, como vemos ali nas notas do acorde diminuto em falsche Zeugen (falsas testemunhas). Porém a maior diversão nesta página está em analisar o depoimento das falsas testemunhas.
Vocês já devem ter presenciado algum momento quando duas pessoas vão contar uma mentira e caem em contradição ou precisam corrigir algo dito lá atrás: é exatamente o que Bach descreve aqui, só que em música. As duas testemunhas cantam em cânon, que é uma forma musical onde a segunda voz (aqui, o tenor) precisa repetir exatamente o que a primeira voz (o contralto) canta. Então o tenor repete er hat gesagt (ele disse) em uníssono e 1 tempo depois do contralto, tudo ok, tudo certo. Mas a continuação ich kann den Tempel Gottes está num registro muito agudo para o tenor cantar, por isso ele altera o canon e passa a repetir uma oitava abaixo, 2 tempos depois. Logo em seguida, em und in dreien Tag, o tenor recupera a segurança perdida e volta a cantar 1 tempo depois, ainda uma oitava abaixo.
A palavra abbrechen (destruir) vem numa figura descendente, colocando abaixo as notas agudas do Tempel Gottes (templo de Deus); e bauen (construir) é o contrário, ascendente, erguendo a frase novamente. Porém na nota mais aguda de bauen, o contralto canta mi bemol e o tenor, mi natural: olha a contradição aí, gente!
O fato é que Jesus realmente disse essas palavras, mas não nesse sentido literal relatado pelas falsas testemunhas: Jesus estava se referindo a ele mesmo, ele iria morrer (destruir) e ressuscitar (reconstruir) em três dias.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-33-2.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 33. Und der Hohepriester stund auf (Bostridge – Vanhulle – Herreweghe)]Evangelist Und der Hohepriester stund auf, und sprach zu ihm: |
Evangelista E o sumo sacerdote se levantou e disse a ele [Jesus]: |
Pontifex Antwortest du nichts zu dem, das diese wider dich zeugen? |
Pontífice Você não responde nada sobre o que estes contra você testemunham? |
Evangelist Aber Jesus schwieg stille. |
Evangelista Mas Jesus permanecia em silêncio. |
As notas de stund auf (levantou-se) realmente mostram esse movimento, subindo. E após a pergunta de Caifás, a partitura tem uma pausa anotada para, realmente, todo mundo fazer silêncio nessa hora. Como não dá pra cantar pausas, a frase schwieg stille (permanecia em silêncio) finaliza quase inaudita nos graves.
Podemos até imaginar a aflição desse pessoal do Caifás com toda essa situação. Jesus já foi condenado de antemão, portanto essa farsa toda serve somente para oficializar e dar um ar de “justiça” ao veredito. Porém o máximo que eles conseguem é uma acusação sem sentido e que não o culpa de nada, então não há do que Jesus se defender.
34. Rezitativ (Tenor): Mein Jesus schweigt zu falschen Lügen stille
Depois de ouvirmos os mais diferentes comentários ao Evangelho, nada mais pode nos surpreender, certo? ERRADO!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-34.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 34. Mein Jesus schweigt zu falschen Lügen stille (Güra – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Mein Jesus schweigt zu falschen Lügen stille, Um uns damit zu zeigen, Dass sein erbarmensvoller Wille Vor uns zum Leiden sei geneigt, Und dass wir in dergleichen Pein Ihm sollen ähnlich sein, Und in Verfolgung stille schweigen. |
Meu Jesus permanece diante das mentiras em silêncio, para assim nos mostrar que a sua vontade cheia de misericórdia é de sofrer por nós, e que nós em dor semelhante devemos fazer como ele, e na perseguição permanecer em silêncio. |
Os recitativos ariosos que ouvimos anteriormente tinham alguma melodia, qualquer uma, no acompanhamento. Este aqui porém tem só acordes secos misturados com pausas iguais àquela que ouvimos no último número, e tal como lá, aqui elas também simbolizam o silêncio de Jesus diante das falsas acusações.
Stille (silêncio) é cantado em notas graves, bem como stille schweigen (permanecer em silêncio) no final. Quanto às dissonâncias, creio que já estamos acostumados a vê-las em palavras-chave como Leiden (sofrer) e dergleichen Pein (dor semelhante), mas a dissonância de erbarmensvoller (cheio de misericórdia) é bem significativa, pois ela se transforma num acorde mais aceitável, um Dó menor.
Há uma outra versão deste recitativo onde Bach adiciona aos oboés e contínuo mais uma viola da gamba. Provavelmente esta versão alternativa faria par com a versão alternativa da próxima ária, …
35. Arie (Tenor): Geduld, Geduld!
… escrita para violoncelo e contínuo, mas substituindo o violoncelo pela viola da gamba na outra versão. Falaremos mais sobre este instrumento na “grande” ária escrita para ele, a nº 57 Komm süsses Kreuz.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-35.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 35. Geduld! Geduld! (Güra – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Geduld, Geduld! Wenn mich falsche Zungen stechen. Leid’ ich wider meine Schuld Schimpf und Spott, Ei, so mag der liebe Gott Meines Herzens Unschuld rächen. |
Paciência, paciência! Quando falsas línguas me picarem. Eu sofro sem culpa Insultos e zombarias, Oh, que meu amado Deus deseje meu coração inocente vingar. |
Na ária inteira há dois motivos bem distintos e conflitantes: aquele mais melódico e com colcheias representa a paciência (Geduld), o outro de ritmo pontuado e bem mais agitado descreve as más línguas lançando falsas acusações. Neste último motivo há vários trítonos espalhados, dando o aspecto de “picada” venenosa. Na parte central da ária, a palavra rächen (vingar) tem uma melodia bem semelhante à das línguas picando, mostrando que o fiel deseja o mesmo martírio para o acusador. É meio anticristão, eu sei, mas vingança é isso mesmo: olho por olho, dente por dente.
E por que pedir paciência? Porque dali a três dias, Jesus vai mostrar para as testemunhas que o que ele falou era verdade, ele realmente vai ressuscitar (isto é, “reconstruir o Templo”). É só esperar um pouquinho…
36. Rezitativ (Mt 26,63b-68): Und der Hohepriester antwortete
Evangelist Und der Hohepriester antwortete und sprach zu ihm: |
Evangelista E o sumo sacerdote respondeu dizendo a ele: |
Pontifex Ich beschwöre dich bei dem lebendigen Gott, dass du uns sagest, ob du seiest Christus, der Sohn Gottes. |
Pontífice Eu o conjuro pelo Deus vivo, para que você nos diga, se você é Cristo, o Filho de Deus. |
“Cristo” é a versão para o grego da palavra em hebraico que nós conhecemos por Messias, e ambas significam o “ungido”, o escolhido. Havia séculos os profetas anunciavam a vinda do Messias, um líder político e religioso que iria reconduzir o povo judeu à glória. Na época de Jesus, em meio à dominação romana, a profecia tinha adquirido um significado ainda mais especial, pois era este Messias que iria comandar o exército judeu contra os romanos.
Pelas notas musicais de Caifás é possível entender a visão de hierarquia que os judeus tinham do Messias: Gott (Deus) lá em cima no ré agudo e Christus um pouquinho abaixo, no dó #. Confirmando na sequência, Sohn (filho) abaixo de Gottes (de Deus). Com frequência eles se referiam ao Messias como “Filho de Davi”, ou seja, um descendente do maior rei que seu povo já tivera, mas ainda assim um homem como eles e não uma divindade. Jesus então corrige o sumo sacerdote, e é aí que o bicho pega:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-36a-2.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 36a. Jesus sprach zu ihm (Bostridge – Selig – Herreweghe)]Evangelist Jesus sprach zu ihm: |
Evangelista Jesus disse a ele: |
Jesus Du sagest’s. Doch sage ich euch: Von nun an wird’s geschehen, Dass ihr sehen werdet des Menschen Sohn sitzen zur Rechten der Kraft und kommen in den Wolken des Himmels. |
Jesus É você quem diz. Mas eu digo a você: de agora em diante, irá acontecer que vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu. |
Sehen (ver) no agudo: vocês verão o Filho do Homem mas ele estará lá em cima, viu? Só que as palavras de Jesus não estão soando bem aos ouvidos deles: Menschen Sohn (Filho do Homem) tem trítono entre voz e baixo, acompanhado de um acorde dissonante de 7ª diminuta. A nota de Rechten (direita) é si, a de Kraft (Todo-Poderoso) é sol, e nos instrumentos de teclado como cravo e órgão, a nota si está à direita de sol.
Und kommen in den (e vindo sobre as) desce do agudo para o grave, ou melhor, vem do céu para a terra. E enquanto ouvimos as palavras de Jesus, as cordas ficam tocando um motivo de semicolcheias com ligaduras que parecem nuvens desenhadas na partitura… até que o próprio Jesus canta esse mesmo motivo na palavra Wolken (nuvens). O detalhe é que Jesus canta uma nota ré acima das nuvens, e essa nota carrega um sustenido, a cruz em alemão. Adivinham quem é?
Esta é última vez que Jesus discursa como Filho de Deus, com autoridade, firmeza e coragem. Na sequência, no nº 38 que veremos no próximo post, será que Pedro também terá a mesma coragem?
E, afinal, o que Jesus corrigiu no sumo sacerdote? Está ali na expressão “à direita de Deus”, que não é “abaixo”, a posição normal para um homem diante de Deus. Quando Jesus confirma ser o Filho de Deus, isso já é grave; agora dizer que ele está no mesmo nível que o Todo-Poderoso, é como dizer que eles são iguais ou de igual importância, e isso passa de todos os limites:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-36b.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 36b. Er ist des Todes schuldig (Bostridge – Vanhulle – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Da zerriss der Hohepriester seine Kleider und sprach: |
Evangelista Então rasgou o sumo sacerdote suas vestes e disse: |
Pontifex Er hat Gott gelästert; was dürfen wir weiter Zeugnis? Siehe, jetzt habt ihr seine Gotteslästerung gehöret. Was dünket euch? |
Pontífice Ele blasfemou; para que precisamos de mais testemunhos? Veja, agora mesmo vocês ouviram sua blasfêmia. O que vocês acham? |
Evangelist Sie antworteten und sprachen: |
Evangelista Eles responderam dizendo: |
Chor 1+2 Er ist des Todes schuldig! |
Coro 1+2 Ele é culpado de morte! |
Na cultura oriental, rasgar as vestes é um sinal comum para mostrar tristeza, por exemplo, ao receber a notícia da morte de alguém querido. Ou indignação, como é o caso aqui, pela ousadia desse sujeito em querer se igualar a Deus. E para mostrar o “rasgar”, Bach coloca as duas sílabas de zerris (rasgou) em duas notas distantes, mi e ré. Além disso, Bach frisa algumas palavras deste trecho com dissonâncias: Kleider (vestes, agora rasgadas), gelästert (blasfemou) e Gotteslästerung (blasfêmia).
Na hora da turba responder, as vozes vão entrando uma a uma, primeiro todo o coro 1, concentrado à esquerda no áudio, e só então entra o coro e orquestra 2, à direita. A sensação é como se estivéssemos no lugar de Jesus, rodeado por uma multidão feroz gritando “você é culpado de morte”. Além disso, uma análise minuciosa da partitura mostra vários cruzamentos entre todas as vozes, com notável exceção do baixo contínuo. Seria um indício da crucificação de Jesus? Talvez, talvez.
Hoje esta pena pode parecer exagerada, mas ela fazia parte da lei dos judeus. Diz o livro do Levítico: “aquele que blasfemar o nome do Senhor será morto”.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-36c.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 36c. Da speieten sie aus (Bostridge – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Da speieten sie aus in sein Angesicht und schlugen ihn mit Fäusten. Etliche aber schlugen ihn ins Angesicht und sprachen: |
Evangelista Então eles cuspiram no seu rosto e bateram nele com os punhos. Mas vários outros batiam no seu rosto e diziam: |
Chor 1+2 Weissage uns, Christe, wer ist’s, der dich schlug? |
Coro 1+2 Profetize para nós, Cristo, quem foi que lhe bateu? |
Nas duas vezes que é citado, Angesicht (rosto) vem em notas agudas, pois o rosto fica na parte de cima do corpo. Nas duas vezes também, schlugen (bateram) é descrito com trítonos e acordes dissonantes. Mas um espetáculo à parte é a turba, com os dois coros se revezando à esquerda e à direita como se nós fôssemos Cristo recebendo pancadas de todos os lados.
37. Choral: Wer hat dich so geschlagen
O comentário ao Evangelho é outro coral escolhido a dedo por Bach: a estrofe 3 de O Welt, sieh hier dein Leben, versos de Paul Gerhardt (1647) e melodia de Heinrich Isaac (1490). É o mesmo coral que já ouvimos anteriormente lá no nº 10.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-37.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 37. Wer hat dich so geschlagen (Philippe Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Wer hat dich so geschlagen, Mein Heil, und dich mit Plagen So übel zugericht’? Du bist ja nicht ein Sünder, Wie wir und uns’re Kinder; Von Missetaten weisst du nicht. |
Quem bate em você, meu Salvador, e com pragas assim o agride? Você não é um pecador, como nós e nossos filhos; de más ações você não conhece nada. |
E mais uma vez encontramos um cruzamento de vozes entre contralto e tenor, agora sob a palavra Missetaten (más ações). Como já havia dito, o cruzamento de vozes é uma má ação na composição harmônica, mas daqui pra frente Bach o utilizará com maior frequência para sinalizar a crucificação de Jesus.
No próximo post vamos dar uma olhada no que aconteceu com dois discípulos de Jesus, Pedro e Judas. E preparem os lencinhos, pois será a hora de ouvirmos uma das árias mais tristes – e belas! – da Paixão segundo São Mateus, a famosa Erbarme dich. Nos veremos daqui a alguns dias, até logo!
Genial do início ao fim.
Amancio,
ai,ai,ai…
esses posts são de uma emoção sem par, sempre me fazem chorar e você nos diz pra preparar-mos os lencinhos!!!
No meu caso será um lençol. (Risos)
Simplesmente divinos.
Amancio, lindissimos e emocionantes. Obrigada por partilhar tamanha riqueza!
Meu deus, que aula! Muito obrigado pela série, de verdade!
Gostaria de compartilhar uma ação importantíssima para o desenvolvimento da música, que realizamos no fim do ano aqui em São Paulo:
http://www.youtube.com/watch?v=ba4v2s_DS_Q
Qualquer ajuda na divulgação será super bem-vinda! =)
Abração!
Ótimo trabalho que voce está fazendo, Amancio, uma oportunidade de todos que amam a música conhecer e apreciar melhor essa obra-prima de Bach! A Estelita comentou comigo, eu procurei o blog e aqui estou aprendendo m ais sobre o genio Bach!