Há 328 anos, neste mesmo dia segundo o calendário juliano vigente à época, nascia Johann Sebastian Bach, o autor da obra que estamos estudando aqui. Feliz aniversário, mestre! Em sua homenagem, hoje está indo ao ar a oitava parte da análise da sua grandiosa Paixão segundo São Mateus BWV.244.
Aos que chegaram só agora, saibam que, nos capítulos anteriores, nós fizemos uma breve introdução da obra e depois analisamos o coro inicial e a unção de Jesus em Betânia. Em seguida tivemos a Santa Ceia, e depois dela acompanhamos Jesus até o Monte das Oliveiras, onde ele orou, foi traído e levado preso. Nos posts seguintes, conferimos a farsa do julgamento pelos sumos sacerdotes e fechamos as histórias dos discípulos Pedro e Judas. Por fim Jesus foi entregue ao governador romano Pôncio Pilatos para que ele autorizasse sua execução, porém, pelo que vimos no final do último post, o governador está convencido da sua inocência e inclinado a soltá-lo. E para isso ele tem uma carta na manga…
45. Rezitativ (Mt 27,15-22): Auf das Fest aber hatte
Evangelist Auf das Fest aber hatte der Landpfleger Gewohnheit, dem Volk einen Gefangenen loszugeben, welchen sie wollten. Er hatte aber zu der Zeit einen Gefangenen, einen sonderlichen vor andern, der hiess Barrabas. Und da sie versammelt waren, sprach Pilatus zu ihnen: |
Evangelista Mas durante a festa tinha o governador o hábito de soltar um prisioneiro para o povo, aquele que eles quisessem. E ele tinha naquele tempo um prisioneiro, um especial entre os demais, chamado de Barrabás. E quando eles estavam reunidos, disse Pilatos a eles: |
Pilatus Welchen wollet ihr, dass ich euch losgebe? Barrabam oder Jesum, von dem gesaget wird, er sei Christus? |
Pilatos Qual vocês querem que eu solte? Barrabás ou Jesus, aquele de quem é dito, ele é Cristo? |
O recitativo começa com uma aura diferente, um tom maior otimista como há muito tempo não se ouvia: é a esperança pela libertação de Jesus por Pilatos. A festa que o Evangelista se refere é a festa da Páscoa, vocês devem se lembrar, já comentamos sobre isso no nº 4. E com a informação de que o governador soltava um prisioneiro durante a Páscoa, fica clara a estratégia de Pilatos: é só colocar Jesus ao lado de um assassino e pedir para o povo escolher. Pela lógica, ninguém vai querer libertar um assassino ao invés do profeta querido pelo povo. Além disso, a jogada tira o poder de decisão das mãos dos sacerdotes.
O prisioneiro, como se vê, era “bem” especial: Gefangenen (prisioneiro) vem acompanhado de um acorde dissonante de 7ª diminuta, e sonderlichen vor andern ([um] especial entre os demais) tem as notas do acorde diminuto. Nas palavras de Pilatos, losgebe (solte) tem notas distantes, ré-si, descrevendo a liberdade. E as duas opções colocadas por ele também são bem diferentes em música: Barrabam é Mi Maior, e Jesum Lá menor, o que não significa que Jesus seja uma opção menor, pois dele se é dito que é o Cristo, o “ungido” em Sol Maior.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-45a-2.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 45a. Denn er wusste wohl (Bostridge – Rubens – Herreweghe)]Evangelist Denn er wusste wohl, dass sie ihn aus Neid überantwortet hatten. Und da er auf dem Richtstuhl sass, schickete sein Weib zu ihm und liess ihm sagen: |
Evangelista Pois ele sabia muito bem que eles, por inveja, o haviam entregue. E quando ele estava sentado no tribunal, mandou sua mulher [uma mensagem] a ele para lhe dizer: |
Pilati Weib Habe du nichts zu schaffen mit diesem Gerechten; ich habe heute viel erlitten im Traum von seinetwegen. |
Mulher de Pilatos Não tenha nada a fazer com este justo; hoje eu sofri muito em sonho por causa dele. |
Ihn aus Neid (por inveja) tem as notas do acorde diminuto, a inveja é mesmo uma… ahn… coisa feia. Richtstuhl sass (sentado no tribunal) é uma frase descendente, como o movimento de se sentar, mas observem que a nota de sass (sentado) é uma semínima, mais longa que as colcheias normalmente usadas nos recitativos. Como dizem os músicos, o tenor “sentou” na nota.
Quando entra a mulher de Pilatos (schickete sein Weib), a frase é ascendente, e antes de suas palavras Bach “zera” a armadura de clave que antes tinha dois sustenidos, Ré Maior. Zerando, vamos para a região de Dó Maior, sem sustenidos nem bemóis: eis uma pessoa neutra no julgamento, certo?
No recado dela, erlitten in Traum (sofri em sonho) tem as notas do acorde de 7ª diminuta evocando o sofrimento. E o veredito dela termina em Sol menor, tonalidade com dois bemóis, pendendo para o lado de Jesus e não para o lado dos sustenidos (ou “cruzes” em alemão).
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-45a-3.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 45a. Aber die Hohenpriester (Bostridge – Herreweghe)]Evangelist Aber die Hohenpriester und die Ältesten überredeten das Volk, dass sie um Barrabam bitten sollten und Jesum umbrächten. |
Evangelista Mas os sumos sacerdotes e os anciãos convenceram o povo, de que eles deveriam pedir por Barrabás e destruir Jesus. |
Aqui, novamente Hohenpriester (sumos sacerdotes) é cantado acima de Ältesten (anciãos), e überredeten (convenceram) tem as notas do acorde diminuto denunciando a manipulação. Mas, afinal, como eles conseguiram convencer a população para votar ao contrário do esperado?
O local onde a multidão estava era o pátio do palácio do governador. Segundo estudos, este local não era muito grande, então não haveria muuuuitas pessoas presentes para se convencer. Barrabás cometeu um assassinato ao liderar uma revolta contra os romanos, então o argumento provável que os sacerdotes usaram foi o do nacionalismo: vocês querem alguém do “nosso” povo, que luta contra os romanos dominadores, ou preferem a mesma opção do governador romano?
Na música o convencimento é uma falcatrua das grandes… Volk (povo) cai num acorde de Ré menor, com as notas ré no baixo e fá na voz. A opção natural do povo é Jesum, que também é Ré menor com notas semelhantes: fá no baixo e ré na voz. Barrabam vem num acorde dissonante, Mi 7, mas os sacerdotes disfarçam as características ruins de Barrabás escondendo a dissonância entre voz e baixo. Com Jesus, eles inventam uma dissonância que não existe no acorde de Ré menor (ré-sol#), e a expõem na voz para todo mundo ver.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-45a-4.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 45a. Da antwortete nun der Landpfleger (Bostridge – Henschel – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Da antwortete nun der Landpfleger und sprach zu ihnen: |
Evangelista Então respondeu o governador e disse a eles: |
Pilatus Welchen wollt ihr unter diesen zweien, den ich euch soll losgeben? |
Pilatos Qual vocês querem, dentre estes dois, que eu solte pra vocês? |
Evangelist Sie sprachen: |
Evangelista Eles disseram: |
Chor 1+2 Barrabam! |
Coro 1+2 Barrabás! |
Evangelist Pilatus sprach zu ihnen: |
Evangelista Pilatos disse a eles: |
Pilatus Was soll ich denn machen mit Jesu, von dem gesagt wird, er sei Christus? |
Pilatos O que eu devo então fazer com Jesus, aquele de quem é dito, ele é Cristo? |
Pilatos pergunta novamente, colocando-se (ich, eu) acima de todos no agudo. Sua pergunta vem na tonalidade de Ré Maior, e as harmonias da música preparam uma cadência natural para Ré, a mesma tonalidade com que, ali no final do recitativo nº 43, Pilatos se maravilhava diante de Jesus. Ele tinha absoluta certeza de que o povo escolheria Jesus, e assim ouviríamos isso:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/barrabam.mp3|titles=Escolhendo Jesus ou Barrabás]Mas o povo pede por Barrabás, num acorde de 7ª diminuta e com o baixo se movendo em trítono. Além disso, são os dois coros que gritam juntos e com notas diferentes, para realmente encher o ambiente com o acorde monstruoso. O Evangelista sobe para o agudo, mostrando o nervosismo e a incredulidade de Pilatos: o que eu faço com Jesus? A resposta é uma das páginas mais assustadoras de toda a Paixão segundo São Mateus:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-45b.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 45b. Lass ihn kreuzigen (Bostridge – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Sie sprachen alle: |
Evangelista Todos eles disseram: |
Chor 1+2 Lass ihn kreuzigen! |
Coro 1+2 Que ele seja crucificado! |
Antes de mais nada, isto é uma fuga, aquela forma musical cheia de regras que aqui é utilizada para simbolizar a lei rígida dos judeus. Por ser uma fuga, dá a impressão de que o grito de um influencia o grito do outro, e assim no final todos estão a vociferar “crucifique-o!”.
O sujeito da fuga é uma melodia cruciforme, ou seja, em formato de cruz, bastante cromática e com vários sustenidos, as cruzes em alemão. Aliás, a fuga começa em Lá menor porém evolui para um Si Maior, tonalidade com 5 sustenidos. E todas as partes tem cruzamentos de vozes, que também simbolizam a crucificação de Jesus. Realmente, é cruz para todos os lados…
Se nós nos assustamos com a música, Pilatos deve ter ficado muito mais assustado com a resposta. A crucificação era um método de execução tão horrível que os romanos só condenavam não-romanos a essa pena; romanos condenados à morte eram geralmente executados por decapitação, um método muito mais rápido e praticamente instantâneo. Já a crucificação era dolorosa e o condenado poderia levar horas até morrer. Veremos mais detalhes no próximo post; preparem o estômago, a crueldade humana por vezes não encontra limites.
46. Choral: Wie wunderbarlich ist doch diese Strafe
O comentário é um coral que soa atônito e amedrontado com a pena proposta para Jesus. A letra vem da quarta estrofe de Herzliebster Jesu, versos de Johann Heermann (1630) e melodia de Johann Crüger; trata-se do mesmo coral que já ouvimos nos nºs 3 e 19.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-46.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 46. Wie wunderbarlich ist doch diese Strafe (Philippe Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Wie wunderbarlich ist doch diese Strafe! Der gute Hirte leidet für die Schafe; Der Schuld bezahlt der Herre, der Gerechte, Für seine Knechte! |
Que extraordinária é essa punição! O bom pastor sofre pelas ovelhas; A culpa é paga pelo Senhor, o justo, para seus empregados! |
Traduzindo ao pé da letra, wunderbarlich quer dizer “maravilhosamente”, mas alguns traduzem como incompreensível (o que faz mais sentido para o coral), estranha, inaudita, sem precedentes. Seja qual for a tradução, a extraordinária harmonia sob esta palavra dá a exata idéia de seu sentido.
47. Rezitativ (Mt 27,23a): Der Landpfleger sagte
Evangelist Der Landpfleger sagte: |
Evangelista O governador disse: |
Pilatus Was hat er denn Übels getan? |
Pilatos Mas que mal ele fez? |
Este é o recitativo mais curto de toda a obra, tem apenas dois compassos. E na pergunta de Pilatos, ouvimos um acorde de 7ª diminuta e um trítono descrevendo o mal (Übels): que mal fez este homem?
48. Rezitativ (Sopran): Er hat uns allen wohlgetan
É a solista quem lhe responde: ele só fez o bem a todos nós. E começa a enumerar tudo o que Jesus fez de bom.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-48.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 48. Er hat uns allen wohlgetan (Rubens – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Er hat uns allen wohlgetan; Den Blinden gab er das Gesicht, Die Lahmen macht’ er gehend; Er sagt’ uns seines Vaters Wort, Er trieb die Teufel fort; Betrübte hat er aufgericht’t; Er nahm die Sünder auf und an; Sonst hat mein Jesus nichts getan. |
Ele fez o bem a todos nós; Aos cegos ele deu a visão, aos paralíticos ele fez andar; Ele nos ensinou a palavra de seu Pai, ele afastou os demônios, os aflitos ele consolou; ele acolheu os pecadores e os aceitou; fora isso ele não fez mais nada. |
Blinden (cegos) vem em duas notas fás que, na clave original para soprano, vão anotadas fora da pauta numa linha suplementar. Com bastante imaginação alguém poderia ver nas bolinhas olhos cortados, ou melhor, com uma faixa na frente cegando-os; e em Gesicht (visão ou, literalmente, “rosto”), Bach move as notas para dentro da pauta, como se estivesse mesmo desenhando um rosto.
As descrições continuam: trieb die Teufel (afastou os demônios) tem um trítono e um acorde de 7ª diminuta, e hat er aufgericht’t (ele consolou [aflitos]) sobe, levantando o ânimo dos aflitos. O mais genial, porém, são os pecadores (Sünder) descritos com um acorde de 7ª diminuta: em vez de resolver a dissonância, Bach a prolonga, mostrando que Jesus acolhe e aceita os pecadores como eles são. Por fim a solista conclui em Dó Maior, a tonalidade natural dos puros e inocentes.
49. Arie (Sopran): Aus Liebe will mein Heiland sterben
A ária que segue enfatiza ainda mais a pureza e inocência de Jesus, ouça:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-49.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 49. Aus Liebe will mein Heiland sterben (Rubens – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Aus Liebe will mein Heiland sterben, Von einer Sünde weiss er nichts, Dass das ewige Verderben Und die Strafe des Gerichts Nicht auf meiner Seele bliebe. |
Por amor meu Salvador quer morrer, de pecado ele não sabe nada, para que a eterna perdição e o castigo da justiça nunca permaneçam sobre a minha alma. |
Assim como no nº 27, Bach aqui também remove o baixo contínuo. Mas a sensação não é a de retirar o chão do mundo barroco, nem de virar o mundo de cabeça pra baixo. Lá no nº 27 havia muitos instrumentos tocando, o efeito era outro; nesta ária há apenas uma flauta e dois oboés da caccia, então, cuidado! Frágil!
Sterben (morrer) cai sempre em notas cromáticas, por vezes dissonantes. Porém não são as dissonâncias que chamam a atenção aqui, mas sim a impressão de respiração suspensa, como se o tempo tivesse parado. Por breves minutos, tudo paira no ar. Jesus, puro e inocente, apresenta-se frágil justo no momento quando sua vida mais está ameaçada.
50. Rezitativ (Mt 27,23b-26): Sie schrieen aber noch mehr
E é a fragilidade da ária anterior que faz com que esta próxima turba soe ainda mais feroz!
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-50b.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 50a. Sie schrieen aber noch mehr (Bostridge – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Sie schrieen aber noch mehr und sprachen: |
Evangelista Eles porém gritaram ainda mais e disseram: |
Chor 1+2 Lass ihn kreuzigen! |
Coro 1+2 Que ele seja crucificado! |
O tenor canta schrieen (gritaram) lá no agudo, gritando mesmo. E a turba repete o mesmo Lass ihn kreuzigen de antes, porém um tom acima, começando em Si menor e terminando em DÓ # MAIOR, tonalidade de 7 sustenidos! Isto significa que todas as sete notas da escala carregam cruzes (sustenidos em alemão). Isto também significa que, no último compasso, todas as notas estampam cruzes. É a multidão inteira de notas na partitura pedindo pela crucificação de Jesus.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-50c.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 50c. Da aber Pilatus sahe (Bostridge – Henschel – Herreweghe)]Evangelist Da aber Pilatus sahe, dass er nichts schaffete, sondern dass ein viel grösser Getümmel ward, nahm er Wasser und wusch die Hände vor dem Volk und sprach: |
Evangelista Então como Pilatos viu que ele nada conseguiria, mas que pelo contrário um tumulto ainda maior se instalava, ele tomou água e lavou as mãos diante do povo e disse: |
Pilatus Ich bin unschuldig an dem Blut dieses Gerechten, sehet ihr zu! |
Pilatos Eu sou inocente do sangue deste justo, o problema é de vocês! |
O primeiro acorde do recitativo é um Dó # Maior, o mesmo acorde que concluiu a última turba: pronto, está decidida a crucificação de Jesus, e por isso as frases do Evangelista e de Pilatos soam nervosas no registro agudo. O medo do governador era de que estourasse uma revolta dos judeus contra os romanos justo agora durante a Páscoa, época em que Jerusalém estava repleta de peregrinos para a festa; então, pressionado entre fazer o correto ou agradar a opinião pública, Pilatos escolhe a opção mais fácil, não sem tecer antes uma certa provocação…
Diz a Bíblia no livro do Deuteronômio, cap. 21: se alguém for encontrado morto e não se souber o culpado, as pessoas devem lavar as mãos e dizer “somos inocentes deste sangue e que nosso povo não seja considerado culpado pelo seu derramamento”. Pilatos não era judeu e portanto não precisaria obedecer a estas leis; mas ao fazê-lo, mordidos pela provocação, os judeus presentes proferem a famosa frase antissemita do Evangelho de São Mateus:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-50d.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 50d. Sein Blut komme über uns (Bostridge – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Evangelist Da antwortete das ganze Volk und sprach: |
Evangelista Então responderam todo o povo, dizendo: |
Chor 1+2 Sein Blut komme über uns und unsre Kinder. |
Coro 1+2 Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos. |
Ambos os coros e orquestras tocam a mesma coisa, em uníssono, e entram todos juntos já na primeira palavra, SEIN Blut…, o que confere ainda mais força e violência ao grupo.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-50e.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 50e. Da gab er ihnen Barrabam los (Bostridge – Herreweghe)]Evangelist Da gab er ihnen Barrabam los; aber Jesum liess er geisseln und überantwortete ihn, dass er gekreuziget würde. |
Evangelista Então ele soltou Barrabás para eles; mas a Jesus ele mandou açoitar e o entregou para que ele fosse crucificado. |
Novamente na região aguda, o Evangelista segue incrédulo com o desenrolar dos fatos. E em gekreuziget (crucificado) temos outro acorde dissonante de 7ª diminuta.
Alguns poderiam se perguntar: mas se Jesus foi condenado à crucificação, por que mandar açoitar antes? O Evangelho de São João nos dá a resposta reordenando os fatos narrados: primeiro Pilatos mandou açoitar Jesus, imaginando que esta pena já seria suficiente para acalmar a multidão enfurecida. Foi depois disso que os judeus pediram para Jesus ser crucificado e só assim, sob muita pressão, Pilatos aceitou condenar Jesus.
51. Rezitativ (Alt): Erbarm’ es Gott
Já que estamos falando do Evangelho de São João, ouçam esta passagem da Paixão segundo São João BWV.245, escrita por Bach anos antes da São Mateus:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv245-18c.mp3|titles=Bach: Paixão segundo João – 18c. Da nahm Pilatus Jesum und geisselte ihn (Crook – Herreweghe – Chapelle Royale)]Diz o texto: “então Pilatos tomou Jesus e mandou açoitá-lo”. E na palavra geisselte (açoitar) ouvimos no baixo contínuo um ritmo pontuado que descreve a flagelação de Jesus. Aqui na Paixão segundo São Mateus, o comentário a seguir também descreve as chicotadas em Jesus usando o mesmo artifício, e o uso das cordas no ritmo pontuado dá um tom um pouco mais realista às açoitadas.
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-51.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 51. Erbarm’ es Gott (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Erbarm’ es Gott! Hier steht der Heiland angebunden. O Geisselung, o Schläg’, o Wunden! Ihr Henker, haltet ein! Erweichet euch der Seelen Schmerz, Der Anblick solchen Jammers nicht? Ach ja, ihr habt ein Herz, Das muss der Martersäule gleich Und noch viel härter sein. Erbarmt euch, haltet ein! |
Piedade, Deus! Aqui está o Salvador amarrado. Oh açoites, oh golpes, oh feridas! Vocês carrascos, parem! Não se comovem com a dor desta alma, a visão de tal infelicidade? Ah sim, vocês tem um coração que deve ser igual a um pelourinho e ainda mais duro. Tenham piedade, parem! |
São muitos os acordes dissonantes do acompanhamento, praticamente um depois do outro. Hier steht (aqui está) aponta para baixo, “aqui”; der Heiland (o Salvador) lá em cima, mencionando a hierarquia e subindo para a liberdade, porém ele está amarrado (angebunden) no chão dos graves. O Schlag (oh golpes) tem o mesmo movimento ascendente das chicotadas ouvidas no acompanhamento. E ach ja (ah sim) cai num acorde de Si 7, que teoricamente deveria se resolver num Mi Maior ou menor… mas como o coração (Herz) deles é de pedra, segue uma nova dissonância, Mi # 7ª diminuta.
52. Arie (Alt): Können Tränen meiner Wangen
Para a ária que segue, Bach suaviza a linha do acompanhamento anterior, que antes representava chicotadas, e passa a batê-la constantemente como o coração citado no poema. Observem:
[audio:http://euterpe.blog.br/wp-content/uploads/2013/03/bwv244-52.mp3|titles=Bach: Paixão segundo São Mateus – 52. Können Tränen meiner Wangen (Scholl – Herreweghe – Collegium Vocale Gent)]Können Tränen meiner Wangen Nichts erlangen, O, so nehmt mein Herz hinein! Aber lasst es bei den Fluten, Wenn die Wunden milde bluten, Auch die Opferschale sein. |
Se as lágrimas na minha face nada podem conseguir, oh, então tome meu coração! Mas permita que, diante do fluxo que das feridas suavemente sangram, seja como um prato de libação. |
Uma das traduções possíveis para o Opferschale citado no poema poderia ser Patera, que é uma espécie de bacia onde as pessoas derramavam líquidos (por exemplo, vinho) como oferenda para os deuses. Na Bíblia, no Antigo Testamento, é comum encontrar esse tipo de oferenda, chamado de libação, usando como líquido o sangue de um cordeiro durante o sacrifício. Assim Picander, o libretista de Bach autor do poema, está sugerindo que, se os carrascos não se comovem com as lágrimas do cristão fiel, que eles usem seu coração para recolher o sangue de Jesus que flui de suas feridas.
E com esta ária fechamos mais um capítulo desta análise da Paixão segundo São Mateus. Semana que vem já será a Semana Santa, e se tudo der certo teremos os dois últimos capítulos publicados no decorrer da semana mais importante do calendário anual cristão. O próximo post será sobre a crucificação de Jesus: preparem-se para fortes emoções!
Este post me deixou (7 sustenidos) mais ansiosa pelo desfecho final desta obra! (risos)
E o segundo manuscrito é de dar calafrios, muito sinistro!
Tenho orgasmos só de ler tudo aqui, ainda que eu lesse por cima a sensação seria magnífica.
Impressionante o conhecimento dos criadores dos posts
Não conheço ainda essa obra de Bach
mas, essa ignorância só vai durar alguns minutos
fantástico
Ouço esta obra sempre e meu coração sempre se alegra com ela, porque, em minha singela leitura, sempre há um amor imenso do compositor por trás disso tudo. É uma obra divina. Parabéns a vocês por este descortinar da obra; nada em Bach é mesmo por acaso e este meticuloso estudo só comprova isso mesmo.