19abr 2017
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Beethoven, Sinfonia nº9 (análise do fundo do baú)

Beethoven surdo no concerto da Nona Sinfonia (1879), desenho de Karl Offterdinger (1829-1889)

Como post de estréia do blog, resolvi ressuscitar algumas análises minhas de bons tempos atrás. Esta aqui, sobre a Nona Sinfonia de Beethoven, dizem que virou “hit” no orkut depois que o Leonardo a publicou numa comunidade sobre Beethoven. Eu sei lá, hoje eu a releio e acho tão mané… Acho que, se eu a escrevesse hoje, eu a faria de maneira mais técnica, mais completa, mais objetiva… e talvez mais chata para os não-iniciados. Se um dia eu reescrever esta análise, publico aqui o link para o post! O que vocês acham? Aguardo comentários.

PS. (30/09/2014): Hoje publiquei uma outra análise da Nona Sinfonia, e realmente ela ficou mais técnica, mais longa e mais objetiva… e bem mais chata para os que não conhecem a sinfonia. Se este é o seu caso, continue lendo abaixo; mas se você já conhece a música, talvez queira dar uma olhada no outro post (clique aqui).

1. Mov – Allegro ma non troppo, un poco maestoso

O primeiro movimento inicia com um pedal lá-mi, ou seja, não estabelece de onde veio nem pra onde vai, terra de ninguém (a audiência se pergunta, que raios é a tonalidade dessa sinfonia?).

Beethoven Sinfonia 9 mov 1 intro:

E o primeiro clímax expõe dramaticamente o primeiro tema da forma-sonata, estabelecendo finalmente Ré menor como base.

Beethoven Sinfonia 9 mov 1 tema 1:

Aliás, da introdução até aqui já notamos de cara a palavra-chave para este movimento: o DRAMA! A tempestade passa um pouco e, caminhando para Si bemol Maior, as madeiras apresentam o segundo tema.

Beethoven Sinfonia 9 mov 1 tema 2:

Vem mais um clímax e somos apresentados ao terceiro tema, bem marcial.

Beethoven Sinfonia 9 mov 1 tema 3:

Na coda acontece uma boa mistureba de fragmentos dos três temas, até que ouvimos novamente o pedal lá-mi do início. Estamos no desenvolvimento. Ao contrário das outras sinfonias de Beethoven, aqui não há repetição da exposição.

O desenvolvimento é construído nos três temas já apresentados, usando a técnica já velha conhecida de Beethoven: fragmentar, fragmentar e fragmentar. O desenvolvimento beethoviniano é uma imensa colcha de retalhos. O clímax mais poderoso anuncia o pedal la-mi da introdução e chegamos à reexposição. Aqui tudo acontece dentro do previsto, ou seja, uma “cópia” da exposição.

Na extensa coda, que começa com o primeiro tema modificado (era pra ser o pedal lá-mi), novamente temos uma sucessão e mistureba de fragmentos dos três temas, até chegar nos instantes finais do primeiro movimento. Um final extremamente DRAMÁTICO, reforçando a palavra-chave aqui!

2. Mov – Scherzo

O Scherzo da sinfonia começa já mostrando a célula rítmica do movimento. O tema (intervalos de oitava em quartas e quintas descendente) é baseado no mesmo tema que abriu a sinfonia, o primeiro movimento. E uma novidade: o tímpano atuando como solista!

Beethoven Sinfonia 9 mov 2 A:

Na parte A, com ritmo ternário, o tema inicialmente é tratado de maneira fugada. Ao chegar o clímax (e depois dele), Beethoven usa e abusa da célula rítmica, com o tema JOCOSO (ó a palavra-chave aqui) passando das cordas para as madeiras, indo e vindo. Até que, numa virada espetacular, a música muda de ritmo, de ternário para binário, e de tonalidade: Ré menor para Maior. Este é o Trio, a parte B, uma versão simplificada do tema da Alegria do quarto movimento.

Beethoven Sinfonia 9 mov 2 B:

Não tarda muito para ouvirmos novamente o ataque inicial do movimento, em ritmo ternário, e recomeça a parte A igual como antes. Lá no final, antes da coda, Beethoven traz mais uma de suas surpresas humorísticas e engana a todos reiniciando o Trio, mas apenas para botar o ponto final no movimento.

3. Mov – Adagio molto e cantabile

O coração da sinfonia abriga um terno Adagio em Si bemol Maior, um tema com variações (a palavra-chave: TERNURA). As duas primeiras notas do tema (ré-lá) trazem o mesmo intervalo que ouvimos no começo dos outros dois movimentos, uma quarta justa.

Beethoven Sinfonia 9 mov 3 A:

O tema em si é exposto pelas cordas, como um coral, com as últimas notas de cada frase sempre ecoadas pelas madeiras (é lindo de cortar os pulsos!).

Beethoven aqui também faz uma das suas, misturando tema com variações e ABA. Depois do tema exposto, modulamos para Ré Maior e somos apresentados a um novo tema, o tema B (cujas primeiras notas e os comentários das madeiras lembram a própria introdução do movimento).

Beethoven Sinfonia 9 mov 3 B:

E calmamente voltamos para Si bemol Maior, os violinos entoam a primeira variação do tema A, com o mesmo eco nas madeiras. Aí deslizamos para Sol Maior e ouvimos novamente o tema B. (a audiência se pergunta: “Pô, tio Ludwig, afinal isto é um ABA ou um tema com variações?”). Mas é a última vez que ouvimos o tema B. Temos uma transição em Mi bemol, com pizzicatos nas cordas (seria esta uma “segunda” variação?), e a segunda (ou terceira?) variação em Si Bemol.

A segunda variação não consegue chegar ao fim, pois ela é interrompiada por um toque militar (toque de recolher?). A orquestra tenta levar em frente uma terceira variação, porém o toque militar novamente a interrompe. Vem enfim a última variação, também interrompida antes de sua conclusão, e por fim a coda.

4. Mov – Presto

O quarto movimento abre com uma das maiores dissonâncias escritas até então.

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 intro:

É como se fosse uma descrição do apocalipse! Isso deve ter assustado muito as primeiras audições, pois causa impacto e não era muito comum; o povo esperava rondós leves, tipo, o principal da sinfonia (que era sempre o primeiro movimento) já foi! Mas… após a dissonância inicial vem.. um recitativo!!

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 recit:

Meu Deus, o que é isso? Recitativos são músicas introdutórias, aparecem nas óperas para anteceder uma ária por exemplo. Então, se isto é um recitativo, um imenso de um recitativo, daqui a pouco ouviremos nada mais nada menos do que a música das músicas!

O recitativo, entoado pelos cellos e contrabaixos, assume inicialmente um ar extremamente sério e inquisidor, até que ouvimos… o primeiro movimento? Sim, é aquela introdução DRAMÁTICA! Aqui não é lugar para alegrias: os cellos rapidamente cortam e tentam mostrar um tema, mais ou menos assim… Vem as madeiras, saltitantes, tocando o JOCOSO segundo movimento. Não! Não é assim, isso é muito sarcástico, o tema tinha de ser mais romântico, assim como… Lá vem as madeiras novamente, tocam o Adagio… e os cellos fazem aquele discurso, põem um ponto final na discussão e mostram o tema dos temas, o tema da ALEGRIA.

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 tema:

O tema vai subindo, primeiro pras violas, depois para os violinos e enfim toma conta da orquestra inteira.

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 alegria:

No meio de tanto júbilo, somos interrompidos em nossos sonhos pela dissonância do começo.

E uma voz diz, em PALAVRAS completamente compreensíveis (afinal, apesar de ser alemão, era um alemão falando para alemães):

– Ó amigos, não esses sons! [referindo-se obviamente à dissonância] – Cantemos, antes, algo mais agradável e alegre!

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 o freunde:

E o amigo entoa o tema da alegria, cantando os versos de um poema de Schiller chamado “Ode à Alegria”. E, tal como foi mostrado na orquestra, a canção vai tomando conta do coro e dos outros solistas. Os interessados na letra e na tradução podem encontrá-la aqui (clique!).

Depois de uma falsa coda (que engana muita gente, pensando que a música acabou), começam as variações. A primeira variação é meio marcial (“alla turca“), com participação do tenor e coro masculino. A segunda variação é em estilo fugado, a orquestra inteira trabalha o tema levando-o para caminhos meio opressivos e tortuosos. E quando você pensa que todos os seus sonhos ruíram… o coro se levanta e entoa o tema na sua forma original, é a terceira variação. É de passar mal de tão lindo, faz arrepiar pêlo em ovo, ressuscitar mortos e coisas semelhantes.

Os trombones dão uma nota (tecnicamente, é para o coro afinar) e um novo tema é apresentado pelo coro. Dêem o nome que quiserem, eu chamo o tema do Criador:

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 seid umschlungen:

– Irmãos! Acima (olha o tema apontando pra cima) das estrelas do céu um Pai bondoso tem sua morada!

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 bruder:

(O tema fica triste)
– Não sentes seu Criador, Mundo??
– Procura-o acima das estrelas do céu. (ó o tema apontando pra cima) Acima delas Ele há de estar!

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 such ihn uberm:

Na quarta variação acontece o processo de fusão dos dois temas, o tema da Alegria com o tema do Criador, como se as duas coisas estivessem [e para mim estão] intimamente relacionadas.

Beethoven Sinfonia 9 mov 4 fusao:

A quinta variação é o produto resultante da fusão dos dois temas (“todos os homens se tornarão irmãos”), e chegamos enfim à esfuziante coda.

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Este post pertence à série “As Nove Sinfonias de Beethoven”:
9. Beethoven, Sinfonia nº 9 (análise do fundo do baú)
Todas as formas serão irmãs: a Nona Sinfonia de Beethoven
Tradução da Nona Sinfonia de Beethoven
Tradução da Fantasia Coral de Beethoven
3. Se a sinfonia é Heróica, onde está o conflito?
8. A sinfonia mais humorística de Beethoven: a Oitava
5. Tcham tcham tcham tcham: a Quinta Sinfonia de Beethoven
1. Primeira Sinfonia de Beethoven
2. Segunda Sinfonia de Beethoven
4. Quarta Sinfonia de Beethoven
6. Sexta Sinfonia de Beethoven
7. Sétima Sinfonia de Beethoven

Este post tem 35 comentários.

35 respostas para “Beethoven, Sinfonia nº9 (análise do fundo do baú)”

  1. Essa análise é um sucesso porque é objetiva, funcional e extremamente didática. É uma excelente experiência procurar um formato pra uma análise assim aqui no blog, com os áudios ajudando a ilustrar a que parte da música você estava se referindo. Em alguns exemplos, o áudio pode até se prolongar um pouco, mostrando -mais do que o comecinho da passagem- um tema inteiro, por exemplo.

    Pensando em destacar algumas partes importantes, eu lembro que a Reexposição no 1o. movimento traz o tema principal não em ré menor, como ele havia aparecido na Exposição, mas em ré maior, o que soa como uma verdadeira contraparte da identidade desse tema.

    No 3o. movimento, o final, com as variações sendo abortadas pelo “toque de recolher”, é um exemplo de uma retórica tornando essa música incrivelmente articulada: você vê a música negociando as próprias idéias! Mas pensando em uma estrutura geral pra esse movimento (esse misto de ABA’ com tema e variações), eu diria que ele é a expansão daquilo que em alguns movimentos de Haydn chamam de “variações duplas”: não um tema, mas de fato dois temas sendo variados (ainda que em Haydn esses dois temas estejam bem mais próximos um do outro, o que faz com que o Charles Rosen aproxime essa forma da idéia de um “rondó de um tema só”).

    E finalmente, no 4o. movimento surge novamente um recurso retórico que faz a gente enxergar a música negociando a concepção das próprias idéias: os temas principais dos três movimentos anteriores são revisitados e devidamente rejeitados pelos contrabaixos, até vir o Tema da Alegria! Lembro que a primeira variação é um notável exemplo de um estilo de música que, nos próximos dias, o Bruno vai falar a respeito. E vale destacar o quanto é significativo o surgimento desse “Tema do Criador”, como você chama, que em seguida se funde com o Tema da Alegria em uma fuga dupla no final.

    Foi bom ver essa análise publicada, porque um dos próximos posts que eu queria escrever era justamente sobre algumas questões de gênero (gênero musical…) na 9a.

    Abraços!

  2. Como primeiro post (e como já estava escrito há anos), eu usei o texto mais para testar o que era possível fazer, como “cortar” a música para mostrar o trecho certo, etc. Ainda estou “me negociando” para ver se seria melhor um texto mais picotado, entrecortado de exemplos musicais, ou um mais fluido e mostrando apenas os trechos básicos.

    Obrigado pelas palavras! Let’s blog!

  3. Engraçado, como é típico de Beethoven, o terceiro tema da forma sonata normalmente tem um eco do primeiro, nunca tinha percebido até esses exemplos pescados pelo Amancio. Aliás, essa música picotada ficou muito legal.

  4. Olá, é o Braz aqui novamente!
    Amancio, Leonardo, Bruno, Randau e Toscano, quero felicitá-los, e desejar sucesso para o Blog.
    Bem colocada essa analise da Nona, Amancio. E como são ótimas essas “reaudições”, pois sempre descobriremos detalhes que na época passaram despercebidos, talvez em face de amadurecimento no apreciar, o momento, as predisposições ou estado de espírito e vários outros fatores que contribuem na apreciação estética, sentimental, de uma obra.
    Em relação à Nona, tenho uma fascinação especial pelo terceiro movimento. Quanto ao primeiro movimento introdutório, você destaca o Drama! Sim, diria também uma dramática interrogação, aonde essa singular música nos levará?! Esses lampejos! Essa inquietação! E veja no que deu, a história da música seria outra depois dessa genial sinfonia!
    Mas é isso, Amancio, inteligente análise dessa obra capital beethoviana. E sempre que eu puder quero contribuir para o blog.

    Saudações

  5. Amigos, obrigado pelas palavras!

    Bruno, além do terceiro tema, há vários outros que são derivados dos temas principais. A partitura é uma festa!

    Erico: difícil não reconhecer a voz dele, né? A gravação era a que eu tinha na mão aqui pra fazer os picotes: Leonard Bernstein com Viena, 1979; Jones, Schwarz, Kollo e Moll. O terceiro movimento está lindo mas muuuuuuuito lento.

  6. A análise parece ser tecnicamente feliz. No entanto, para leigos, como eu, não significa muito saber que foi usado tal pedal lá-mi ou se foi usado o Si Bemol Maior… O mais importante é a interpretação da música e, quanto a isto, achei muito pobre, restringindo-se a colocar palavras chaves muito gerais como alegria, drama…

  7. Oi Ana! Descrição de música absoluta tem sempre esse problema. Já que ela não descreve algo que possa ser descrito em palavras, resta ao analista duas alternativas: ou usar e abusar de termos técnicos (o Si bemol e o pedal lá-mi), ou usar e abusar de palavras chaves gerais e subjetivas. Usando um ou outro, o importante é não tirar do foco o objetivo, que é fornecer uma espécie de “guia mínimo” para que o ouvinte não se sinta perdido nesse mar de sons, jogado de lá para cá como que aleatoriamente, quando na verdade os sons estão ordenados de uma maneira muito lógica e racional.

    O site tem várias outras análises – tanto para leigos quanto para técnicos. Recomendaria a você O Moldávia do Smetana, O Espírito das Águas do Dvorák e As Quatro Estações do Vivaldi.

  8. E como saberei que este tipo de música constitui o que chamou de “música absoluta”? Qual é o critério de diferenciação? Mesmo porque, a música tem a Ode à Alegria, de Schiller, tem frases (“Um dia todos seremos irmãos!”), não entendo muito bem quando diz que não trata de nada especificamente, nada que possa ser dito.
    No mais, este site é riquíssimo, a carta de Tchaikovsky sobre sua 4ª sinfonia é apaixonante!

  9. Pois é, esta é a pergunta que todos nós fazemos! :-)

    De maneira geral, a música absoluta (ou não-programática, porque não tem uma “historinha” pra contar) geralmente usa estruturas mais fixas, ou clássicas, como sinfonias, quartetos de corda, sonatas, concertos, etc. A música programática está mais presente nos poemas sinfônicos, fantasias e aberturas do romantismo. Há muitas exceções – a Sinfonia Fantástica de Berlioz é praticamente um poema sinfônico, e Romeu e Julieta de Tchaikovsky está escrito numa forma-sonata – e às vezes o próprio compositor recomenda ouvir sua música esquecendo-se completamente seu programa (é o caso de Noite Transfigurada do Schoenberg). A Suíte Lírica do Alban Berg era pura música absoluta, até descobrirem um significado extra-musical nela 50 anos depois de escrita.

    A interpretação faz parte da magia da música clássica. Eu vi religião na Nona Sinfonia de Beethoven, uma amiga minha viu filosofia, já um outro não viu nada disso. Muitos consideram o terceiro movimento a música mais triste que existe, mas eu não consigo ver tristeza ali. É como eu disse anteriormente: há músicas que não podem ser descritas em palavras.

  10. O que não dá é pra descrever música de maneira tão subjetiva que já não diga mais nada sobre a música, mas sobre os devaneios de quem analisa. Impressões subjetivas cada um já tem por conta própria quando ouve.

    Daí certa objetividade ser necessária ao se dar ao trabalho de falar sobre uma obra, pra que haja, afinal, termos que possam compartilhar um sentido franco a todos que ouvem a música. Também não dá pra esquecer que o compositor pode perfeitamente fazer certas coisas bastante significativas que residem em uma percepção no mínimo “plástica” da música, sem que isso prejudique a percepção natural, tudo bem, mas convidando quem realmente goste de música, e não apenas de efeitos subjetivos, a decifrar a obra e o seu sentido de maneira mais profunda. Eu penso que música clássica tem sempre esse convite.

    No mais, o espaço de comentários serve justamente pra resolvermos tudo o que for preciso pra que o post seja útil. Inclusive tirar as dúvidas! :D

  11. Aos que entendem de teoria musical: É possível encontrar algum defeitinho que seja nessa sinfonia, de qualquer natureza, seja de unidade tonal, construção musical, orquestração, contraponto e fuga, nota fora do lugar, marcação de tempo (como o allegretto da sétima, que não se conhece bem se é mais rápido ou mais lento)…Ou ela é perfeitinha em tudo?

    Obrigado.

  12. Olá Caio! Respondendo curto e grosso, se vc quiser perfeição em música, vá ouvir Bach; Beethoven é humano demais para ser perfeito. :-)

    Falando sério agora, “perfeição” em arte é algo sempre muito relativo. Você vê algum erro em O Grito de Munch? Talvez aquele azul pudesse ser mais verdinho, ou o céu não precisasse ser tão laranja… :-)

    (risos) Ok, antes de eu te responder mais objetivamente, vc entendeu o que eu queria dizer? Podemos apontar erros técnicos, afinal ninguém é perfeito, mas chamar de erro certas decisões conscientes e subjetivas tomadas por Beethoven, é querer ser pretensioso demais. Veja que este caso é diferente de uma Décima de Mahler, uma obra não revisada e que ainda passaria por uma série de correções pelo próprio compositor. E se não tivesse jeito de corrigi-la e desse na telha dele, ele poderia queimar o manuscrito, como fez um insatisfeito Brahms com várias de suas obras.

    Mas voltando à Nona de Beethoven, destaco alguns pontos para deixar vc pensando e decidir se são erros ou não. Na quinta variação do Finale, instantes antes de iniciar a coda, os 4 solistas cantam um trecho (Poco Adagio) semelhante a uma cadenza, cheia de notas meio-livres, meio-jogadas ao acaso, um desafio para os cantores se sincronizarem. Na coda que segue, o coral passa um sufoco para cantar aquelas palavras em alemão naquela velocidade, parece que Beethoven não foi muito amigo com a voz humana ao dar aquelas notas para o pessoal cantar (um amigo certa vez me disse que as sílabas fortes caem nos tempos fracos). Vc citou marcação de tempo, sim, as indicações metronômicas de Beethoven na sinfonia inteira são duvidosas e até hoje são discutidas pelos estudiosos. Os que dizem que a marcação está correta citam um caso de uma pessoa próxima de Beethoven, que ouviu o mestre dizer que “tocou” a sinfonia inteira em sua cabeça em apenas 45 minutos! Outros se perguntam: será que há músicos capazes de tocar certas passagens em velocidades tão inapropriadas? E aí surgem mil motivos para alterações na partitura, com justificativas das mais diversas. Por exemplo, na coda do primeiro movimento, antes do crescendo final para os últimos acordes, há um rallentando: Beethoven anota o a tempo (o retorno para o tempo normal) dois compassos antes do que os regentes fazem, que é com as cordas graves e o tímpano marcando. Quer dizer, o “a tempo” de Beethoven não soa musical ali naquele compasso, e faz mais sentido dois compassos depois. Em 1997 Jonathan Del Mar publicou pela Bärenreiter uma edição crítica da sinfonia, contendo aproximadamente 3000 correções (na sua visão) com relação à edição clássica da Breitkopf & Härtel, de 1864. Quem está certo, quem está errado? Como vc pode ver, são pelo menos 3 mil pontos de divergências…

    PS.: Se a língua de Shakespeare não é problema para vc, recomendo ler esta seção do artigo no Wikipedia. Este assunto é deveras interessante, e ainda hei de escrever um post “Compositores também erram”.

  13. Bota deveras interessante, porque, além das decisões do compositor para a composição, um revisor/editor crítico deve levar em conta também seus casuais erros de anotação no manuscrito. E isso é extremamente comum: as próprias partitas e sonatas para violino solo de Bach, por exemplo, têm duas fontes autógrafas que não são sequer exatamente iguais, e há incongruências, como ritmos mal escritos no compasso, encadeamentos de acordes típicos nos quais uma nota parece mal colocada, etc. Isso gera discussões sérias a respeito de certas passagens, mesmo notas, o que elas seriam, se Bach esqueceu um, às vezes até dois bequadros dentro de um compasso, como se tocam certos ritmos nos quais “sobram” notas, etc. A edição crítica do Del Mar da Nona Sinfonia do Beethoven, mencionada acima pelo Amancio, lida com muitos desses casos bem funcionais também (há uma passagem, por exemplo, que aparece quatro vezes no 1o. mov., e apenas em uma delas falta um acidente, então fica muito claro que ali ele deve ser colocado, até pra fazer sentido na escala que ele cumpre).

    Isso mostra como o trabalho da edição deve ir sempre “além” das notas.

  14. Como vocês conseguem ser tão técnicos quanto claros, simples? Com tanta informação e exemplos assim, o Amâncio parece uma enciclopédia musical humana…

    Obrigado, respondeu minha pergunta. =)

    E sobre os erros que me referia, era ao plano de expressão, e não no plano do conteúdo, que é muito subjetivo e relativo, como a analogia que você usou com O grito de Munch.

    Enfim, como o Leonardo citou, era sobre os erros editoriais, principalmente, minha dúvida.

  15. Ah, eu queria fazer uma sugestão, aproveitando o tema de “ponto de vista técnico”. Bem que alguém poderia fazer um post sobre a recepção da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky né? como foi o contexto e a recepção do público, que na estréia metade vaiava, metade aplaudia!

    Abraços.

  16. Legal! Alguém sabe qual é a dança folclórica lituana, em que o Stravinsky se baseou para compor os primeiros compassos para Sagração da primavera (fagote)?

    obrigado.

  17. Vocês têm alguma análise do 2.º movimento (alegretto) da 7.ª sinfonia de Beethoven. É o que há de mais belo que já ouvi até hoje. Obrigado.

  18. Assim de bate-pronto, tenho não – talvez algum de meus colegas tenha, não sei… (Leo, tá aí?).

    Mas é só escrever, não é nada complicado, é um ABABA simples. Legal será mostrar a ligação dos temas com os temas do primeiro movimento. Vou adicionar na minha lista de sugestões de posts, mas torço para que sua impaciência não seja grande. :-)

  19. Até dei uma nova procurada aqui e também não conheço nenhuma análise mais detalhada… Mas além de não ser complicado, haveria bastante pra dizer: penso agora sobre uma análise fraseológica desse movimento, ou seja, a definição do que seja tema, do que seja melodia e do que seja acompanhamento nele. Ele vai renovando a noção desses elementos gradativamente, e em uma sequência que mistura o contraponto de um cânone com a estrutura de variações de certa forma (de repente um esboço de ciaconna ou passacaglia?). Me lembra justamente as variações da Sinfonia 3, em que o que era tema acaba virando acompanhamento. De resto, como disse o Amancio, é uma alternância de seções bem explícita, com um fugatinho no final.

  20. É sem dúvida, a descrição mais pura, apaixonada e verdadeira que já li sobre a música das músicas…parabéns por ter o coração capaz de receber interpretar algo tão supremo.

  21. Desde que conheço a internet nunca me deparei com um blog tão interessante quanto este. Agradeço muito ao Amancio pelo grande tesouro que têm distribuido através de suas publicações. Parabéns…

  22. Gostaria de acrescentar (depois de anos…só agora deparei com esse ótimo blog) que o final do 1°movimento parece um tsunami, uma avalanche…é inacreditável! Principalmente na versão de Leonard Bernstein em Berlin 1989!
    A transição que ele faz entre a parte do tenor e a explosão do coro…não tenho como descrever o que eu sinto…
    Bem, pode parecer clichê ou exagero mas na minha humilde opinião a 9ª sinfonia não pode ser classificado apenas como música. Acredito de verdade que é um acontecimento da humanidade. O ser humano inventou a roda…foi até a lua..e Ludwig Van Beethoven fez a Nona Sinfonia.

  23. Só hoje descobri este maravilhoso e instrutivo blog. Hoje, dia 25 de maio, só se fala em golpes, corrupção e este blog maravilho veio dar-me informações técnicas acessíveis sobre essa peça que considero o antítese de todo o mal que existe na humanidade. Os versos de Schiller elevam ainda mais alto o prazer de ouvir a execução da 9a. Sinfonia. Um homem que faz uma obra dessas sem poder mais ouvir, mas tendo a música dentro do cérebro.. É o milagre da humanidade, que vai da mais profunda podridão à mais elevada criação.

  24. Descobri o Blog EUTERPE através do blog PAPO DE HOMEM. Pretendo começar desde o primeiro post até conseguir alcançar os atuais. Esse blog é um exemplo de extrema generosidade e gentileza! Estou encantada, impressionada e grata.

  25. Eu fui trompete da orquestra sinfônica de Santos. eu não compreendo o que uma análise deste tipo pode conduzir. O mesmo acontece quando alguém quer fazer uma analise harmônica de uma sinfonia. É muito difícil analisar uma genialidade baseando-se em livrinhos de harmonia. Não dá para saber como um Beethoven conseguiu fazer os encadeamentos harmônicos que ele fez do mesmo modo que como ele fez as melodias. Não dá para analisar genialidade.

  26. Olá Milton!

    Esta análise em específico é destinada para quem não conhece ou acabou de conhecer a Nona Sinfonia. Nesse estágio, a obra é um oceano de sons, jogando o ouvinte de lá para cá como um barco sem rumo. O que essa análise pretende mostrar é que há um norte, há uma direção: Beethoven quer dizer alguma coisa que nem sempre é dita apenas com palavras, e se você ficar o concerto inteiro prestando atenção nos movimentos do timpanista e dos contrabaixos, você vai perder o mais importante.

    Anos depois desta aqui, eu escrevi uma outra análise mais técnica, estrutural, direcionada ao ouvinte que já conhece a sinfonia. Você pode encontrá-la clicando neste link:
    http://euterpe.blog.br/analise-de-obra/nona-sinfonia-de-beethoven
    Nesta outra análise eu pude mostrar que Beethoven manipula a forma da sinfonia para demonstrar os ideais da Revolução Francesa que ele tanto amava: liberdade, igualdade, fraternidade. Ou seja, a fraternidade vai além das palavras do poema (Alle Menschen werden Brüder, ou “todos os homens serão irmãos”), vai além de melodias e harmonias, e passa a orientar até mesmo o fluxo do discurso musical. Isso não é genial? Mas eu só pude descobrir isso quando estudei (analisei) a sinfonia. Como eu poderia abrir mão do prazer dessa descoberta?

    E é por isso que as pessoas continuam estudando essas obras duzentos anos depois de criadas, sempre há algo novo para descobrir. No caso da análise harmônica, vale a pena entender a progressão dos acordes para poder reconhecer efeitos, padrões e soluções que foram encontradas e exploradas por anos e anos. É um prato cheio para compositores iniciantes (quase como um “manual”), mas também para analistas, estudantes de música e curiosos pelo assunto, porque ajuda a entender de onde os compositores seguintes partiram para criar obras ainda mais complexas.

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