Em 11 de julho de 2012, por Greg Sandow
Como eu disse em meu último post, Pierre Boulez serve de garoto propaganda para um problema que a música clássica tem – alguns de seus mais respeitados compositores vivos não têm muita ligação com a cultura do nosso tempo.
Eis aqui o que eu quero dizer. O mundo clássico mainstream – ao mesmo tempo em que não programa a música de Boulez com muita frequência – ainda o trata como se sua música fosse grandemente importante. Eu me lembro de conversar com um membro de uma faculdade na maior universidade de música do estado, que queria ansiosamente me conhecer porque gostava das minhas ideias. Ele não acha que Boulez, em suas composições, tenha dado quaisquer passos musicais que compositores atuais devessem dar. Mas ainda assim, quando ensinava história da música, ele dava grande atenção a Boulez como um grande e pioneiro compositor radical.
O que, em termos puramente musicais, ele foi. Eu mesmo possuo uma partitura de Le marteau sans maître (uma peça chave de Boulez dos anos 50), e também uma da primeira Improvisation sur Mallarmé, outra peça chave. Ouvi muito ambas as obras, estudei como elas foram escritas, e até coloquei parte de Le marteau no meu software de notação musical, para que eu pudesse me aproximar de cada detalhe dela, tanto das notas como dos seus sons.
Mas fora da música clássica? Boulez – quando estava em plena produção nos anos 50 e 60 – teve qualquer alcance na cultura francesa e fora do seu pequeno nicho?
Nem um pouco. Philip Glass estava em Paris no começo dos anos 60, e diz em sua autobiografia que simplesmente não ouvia Boulez, mas, ao invés disso, ia a filmes de Truffaut e Godard. Ele também disse – em uma entrevista que lembro de ter lido, mas que agora não consigo encontrar – que dificilmente fazia isso sozinho, que artistas mais jovens em Paris estavam todos indo a essa “nova onda” de filmes (para usar o termo da época), e não ouvindo Boulez.
Da mesma forma comigo. Eu estava na faculdade. Mesmo no ensino médio, no fim dos anos 50, eu estava assistindo a cine arte, embora amasse Antonioni (ainda um dos meus artistas fundamentais) mais do que os diretores franceses. Mas na faculdade eu ia ao Brattle Theater em Cambridge (eu estava em Harvard), e assistia a Truffaut e Godard. Esses filmes ajudaram a me moldar. Antonioni me atingiu fundo no coração. Boulez? Eu não tinha ideia de quem ele era. Assim como Carter, Babbitt, mesmo Cage. Embora eu estivesse profundamente envolvido com a música clássica – eu era um cantor, e dava recitais e cantava papéis operísticos (Guglielmo em Così foi meu primeiro) – obras clássicas contemporâneas não significavam nada para mim. Minha arte cotidiana era a dos filmes.
E eu sequer estava sozinho nos EUA. Em um post anterior, listei o livro de Mark Harris, Pictures at a Revolution [Quadros de uma Revolução], como leitura obrigatória, se você quer um quadro das grandes mudanças culturais que atingiram os anos 60. Como Harris mostra, pessoas como eu – mas com interesse profissional em filmes – também viram esses filmes de arte europeus, e então foram para Hollywood e começaram uma revolução tão poderosa que criou um novo tipo de filme para uma nova geração. E que deixou a velha guarda rodando. (O New York Times demitiu seu crítico de cinema. E a revista Time se retratou proeminentemente em razão de uma resenha negativa de Bonnie e Clyde – um dos primeiros filmes americanos da “nova onda” – e a substituiu por uma longa, extasiada resenha.)
Então tudo bem – Godard teve muito mais alcance cultural do que Boulez jamais teve. Mas é importante ver o porquê. Boulez vê (ou ao menos via) a si mesmo, ao menos em alguma medida, como o apóstolo de uma nova cultura. Pode-se ver isso em algo que ele já disse frequentemente sobre o porquê da música tonal ser obsoleta. Ele disse isso a mim, quando eu o entrevistei, quando eu era um crítico: A música tonal é obsoleta, porque precisamos de uma nova linguagem musical para expressar as novas emoções dos dias presentes.
Eu queria ter perguntado a ele quais são essas novas emoções. Porque se você olhar para a sua obra, não consegue dizer. Ambas as peças que eu nomeei anteriormente são obras vocais. Elas têm textos. A Improvisation tem um texto de Mallarmé, um poeta famoso por nunca nomear diretamente um objeto:
Le vierge, le vivace et le bel aujourd’hui
Va-t-il nous déchirer avec um coup d’aile ivre
Ce lac dur oublié que hante sous le givre
Le transparente glacier des vols qui n’ont pas fui!
O virgem, o vívido e o belo de hoje
vai nos ferir com um golpe de asas ébrio
Esse lago esquecido sob a geada
O transparente gelo dos voos que não foram mais!
Muito bonito, e claro, também difícil. Com significado profundo para algumas pessoas, certamente para Boulez, mas também claramente não é uma poesia que fala – ao menos não diretamente – para o que estava explodindo ainda no começo dos anos 60.
Ou Le marteu (o poema é de René Char):
La roulette rouge au bord du clou
Et cadavre dans le panier
Et chevaux de labours dans le fer à cheval
Je rêve la tête sur la pointe de mon couteau le Pérou.
O reboque vermelho a bordo da unha
E cadáver na cesta
E cavalos de arado na ferradura
Eu sonho a cabeça na ponta da minha faca o Peru.
(Você vai entender que eu não sou contra poesia como essa, ou compositores que a colocam em música. Sou um grande fã de arte difícil, e se Mallarmé – para citar novamente um comentário muito rude sobre a sua escrita – nunca nomeia um objeto, muitas pessoas diriam que Antonioni, um de meus deuses artísticos, fez filmes sem nenhum enredo ou eventos.)
Então agora Godard. Seus filmes foram radicais em seu tempo, e podem parecer assim ainda hoje. Personagens (em Masculin, Féminin) voltam-se para a câmera, e são entrevistados sobre eles mesmos. Em uma sequência famosa de Bande a part, as personagens principais decidem não falar por um minuto, e a trilha sonora inteira fica em silêncio. (Embora apenas por 36 segundos.) Em outro famoso momento, três pessoas começa a dançar uma melodia em um jukebox café. A voz de Godard aparece na trilha sonora, decretando um parêntese. (Um conceito de que Boulez iria gostar, você pode pensar, porque ele falava sobre passagens musicais que pudessem funcionar como parênteses.) Enquanto Godard fala, a música fica em silêncio, mas as personagens ainda dançam.
(Quando eu reassisti ao filme um par de anos atrás, aquilo me atravessou para a tela, como se alguém tivesse corrido direto para fora de um penhasco, e então – diferentemente das personagens de desenhos, que continuam correndo por um momento e então olham para baixo e caem – tivesse apenas continuado a correr. Apesar de que quando encontrei esse momento online agora pouco, pareceu menos arrebatador. Talvez precise de todo o momentum do filme.)
Outros momentos:
- Em Contempt, um momento de um caso instável, com as personagens filmadas a partir de cômodos próximos aos cômodos em que eles estão, os ângulos das portas colocando seus problemas dentro de um quadro afastado, mas não impassível.
- Em Two or Three Things I Know About Her, um momento em uma conversa aprofundada por um close em uma xícara de café, levemente agitada, com a espiral da espuma no meio da xícara girando lentamente.
- Em La Chinoise, uma conversa em um trem, com as vozes ouvidas, mas o filme olhando para fora da janela do trem, então você sente o ritmo do trem parando nas estações, e começando de novo.
Então sim, Godard era radical. (E Masculin Féminin, Bande a Part e Contempt são alguns de seus primeiros filmes.)
Mas eis aqui o que é mais importante. O que Godard mostra nesses filmes? As novas emoções do tempo dele – e do tempo de Boulez – e as novas reflexões que vinham com elas. Tudo em processo de formação, em processo de ser entendido (e também não entendido). Novas ideias sobre o amor, sobre o trabalho, sobre a moral, sobre a lei e o crime, sobre a política. É sobre isso que as personagens de Masculin Féminin são entrevistadas, é isso o que as personagens em todos os outros filmes estão vivendo. E conversando a respeito. E tentando entender.
É por isso que Godard foi tão poderoso. Ele fez exatamente o que Boulez disse que deveria ser feito – inventar uma nova linguagem (nesse caso uma nova linguagem fílmica) para novas emoções.
(Antonioni, de modo intercalado, ganhou um prêmio especial em Cannes em 1960 precisamente por sua nova linguagem fílmica, em que constantes movimentos fluidos da sua câmera captam mudanças no ambiente emocional, ainda mais sutilmente do que a música de Debussy faz em Pelléas.)
É por isso que Godard falou para seu tempo e Boulez não. Boulez pode ter sentido as novas emoções do seu tempo (lembre o poema que Schoenberg musicou em seu segundo quarteto de cordas: “Eu sinto o ar de outros planetas”), mas ele as personificou em obras cujo significado é vedado da vida cotidiana.
Enquanto isso Godard encontrou novas maneiras de perguntar na tela as mesmas questões que pessoas jovens do seu tempo estavam perguntando, e lhes dar uma ressonância que fica totalmente perdida quando afirmo alguma delas diretamente: que papel o sexo deveria desempenhar em suas vidas, o que aconteceu com o casamento, a moralidade comum estava tão arruinada que o crime era uma opção, a classe trabalhadora deveria superar o capitalismo? (Esta última, é claro, não é uma questão que poderíamos relacionar atualmente, mas para a França de 1960, com seu forte partido comunista e sua longa história de política marxista, era algo que pessoas jovens perguntavam, e assim responderam em suas próprias novas maneiras com a rebelião estudantil de 1968. Um evento cujas razões estavam tão incorporadas nos filmes de Godard que ele poderia tê-lo inventado.)
“Boulez and Godard”, por Greg Sandow, traduzido por Leonardo T. Oliveira.